«Novidades» do espólio literário de Pedro da Silveira a um ano do centenário do escritor
Vasco Rosa

«Novidades» do espólio literário de Pedro da Silveira a um ano do centenário do escritor

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Centário de Pedro da Silveira, V

À iluminada Ana Monteiro, à generosa Gabriela Silva, ao bom gigante César Rosa e ao extraordinário Pierluigi Bragaglia (1963-2020)

 

 

Quero começar por agradecer ao Nuno Costa Santos a confiança e o convite para participar de novo neste Arquipélago de Escritores, permitindo destacar na agenda cultural dos Açores — e desta maneira tão ilustre — a proximidade do centenário de Pedro da Silveira.
Há pouco mais dum ano, vim falar na casa aqui ao lado, a Biblioteca Pública, sobre o poeta nascido na Fajã Grande da Ilha das Flores a 5 de Setembro de 1922, palestra inicialmente feita na sua terra natal e também repetida na bela biblioteca de Angra do Heroísmo com o claro propósito de espalhar pelos Açores o aviso da proximidade desta efeméride. Pouco tempo depois, com Urbano Bettencourt, Carlos Bessa e Cláudia Cardoso foi gizado um plano de realizações, um calendário e um orçamento compatíveis com os consideráveis trabalhos de pesquisa, edição e publicação, e eu comecei — com o apoio da Câmara Municipal das Lajes das Flores — a fazer os levantamentos da minha especialidade e a escrever sobre Pedro da Silveira para jornais e revistas, distribuindo provas das suas multifacetadas actividades e interesses. O Diário dos Açores aceitou integrar este projecto e abriu as suas páginas a uma longa série de artigos sobre o escritor falecido em 2003, para que o biénio 2021-22 o torne mais conhecido dum maior número possível de açorianos. Com o de hoje, são cinco os textos publicados este ano sobre Pedro da Silveira.
A Biblioteca Pública e Arquivo Regional Luís da Silva Ribeiro, de Angra do Heroísmo, tem há meses uma equipa de seis bibliotecários de topo a preparar uma exposição biobibliográfica que será inaugurada em Maio próximo e ficará patente até ao fim do ano, ao mesmo tempo que completam a catalogação de toda a livraria doada, com c. 6000 títulos. O Boletim do Núcleo Cultural da Horta convidou Urbano Bettencourt a coordenar um dossier sobre o escritor centenário, a incluir no seu número anual de 2022. A revista Colóquio Letras publicará em breve texto meu que apresenta e comenta aquela que julgo ser a primeira crítica a livros de Carlos de Oliveira saída nestas ilhas, pela caneta de Pedro em Maio de 1945. A Gávea Brown dirigida por Onésimo Teotónio Almeida também estará envolvida, difundindo um conto inédito do nosso escritor. Atrasada pela pandemia, a Grotta 5, que será lançada este mês, também inclui colaboração minha em que recupero eloquente correspondência travada entre Silveira e Côrtes-Rodrigues. Conseguida a aprovação dos autores vivos e de herdeiros benevolentes, o Instituto Açoriano de Cultura fará uma reedição e-book da Antologia da Poesia Açoriana, publicada em 1977, esgotada há muito e com os elementos novos que em 1985 lhe acrescentou. Por iniciativa de Leonor Sampaio Silva, a Universidade dos Açores propõe-se organizar um colóquio de dois dias por ocasião do centenário, e creio que em breve fará o respectivo call for papers. A 4 de Setembro passado, a Casa dos Açores em Lisboa fez-se representar no acto de colocação duma placa de homenagem a Pedro da Silveira, na fachada do prédio em Campo de Ourique em que ele viveu por quase quarenta anos.
Pessoalmente, não tenho dúvida de que a compilação em livro dos seus Dispersos de literatura e folclore vai surpreender pela extensão e alcance do seu ensaísmo, crítica e crónica, fazendo reemergir aos olhos de hoje as suas estratosféricas qualidades de investigador da história literária insular e continental, de Roberto e Carlos Mesquita a Cesário Verde e Camilo Pessanha, autores sobre os quais, como é bem sabido, publicou trabalhos de absoluta referência. A passagem de Fernando Pessoa pela Ilha Terceira, ou a de António Nobre pelo Faial, a caminho da América do Norte, tão-pouco lhe escaparam. Já em Janeiro de 2018, Vamberto Freitas, então coordenador do suplemento cultural do Açoriano Oriental, fez-me o favor de publicar o texto de Fevereiro de 1953 de Pedro da Silveira sobre essa viagem do autor do Só, precisamente quando pretendi chamar a atenção de editores para a bondade de se pesquisar e imprimir de novo os trabalhos de imprensa do poeta. A futura publicação desse livro de ensaio e crítica numa «Edição do Centenário», juntamente com a obra poética reunida num Vou ao Mar Buscar Laranjas revisto e ampliado, juntará de modo indissociável — como sempre deveria suceder — as duas faces da sua obra literária.
Mas perguntarão: e o espólio doado à Biblioteca Nacional em 1989 e depois, já postumamente, em 2003, nada de novo tem para nos oferecer? A resposta só pode ser esta: ao mesmo tempo, Sim e Não, ou — para adensar mais a vossa expectativa — Não e Sim.
As 32 caixas ali depositadas há quase duas décadas permanecem ainda hoje em regime de «pré-inventário». A quem se escandalize que assim seja na instituição que ele serviu como poucos, acrescentarei que o conteúdo das caixas não corresponde, sequer, ao descritivo que lhes foi dado no «guia preliminar». Diria mesmo que em todo este longo período raramente terão sido chamadas à consulta de cabo a rabo e muito menos ainda foram objecto, por gente da casa — a quem tal competia — dum estudo apurado e duma arrumação orgânica que recoloque materiais avulsos nos conjuntos temáticos a que pertencem, e diga — ou possa vir a dizer — que papéis daqueles dizem respeito a obras já publicadas. O conjunto precisa de ser tratado enquanto tal, e são uns bons milhares de papéis. Fica-se facilmente com a impressão de que o esforço de Pedro da Silveira foi mais acumulativo do que conclusivo, denunciando — além de eventual dispersão, que a tantos atinge... — trabalho contínuo ou perpétuo sobre temas escolhidos, sem que depois lhes tenha dado aquele nó final que só o imperativo da impressão, ainda que póstuma, poderia impor.
De facto, de que nos vale hoje uma Antologia do Conto Açoriano, sem sabermos a data-limite dessa recolha ou dispormos de um dos seus exigentíssimos estudos prévios?
Um segundo e creio que alvitrado novo tomo de Mesa de Amigos tem praticamente 350 folhas, entre versões, «borrões» e um limbo de traduzidos por escolher. Os poemas estão quase todos rasurados e por passar a limpo — e todos sabemos que a cada releitura novas e melhores variantes podem aparecer —, contudo o livro parece estar um pouco melhor encaminhado. Falta-lhe claramente uma sequência decidida pelo autor, mas não é coisa difícil de fazer, desde que bem intuídos o espírito e o método seguidos nas edições anteriores, em 1998 e 2003. Ainda assim, se levado avante tão generoso empreendimento correria o risco de dar em nada, pois o editor da Assírio & Alvim já me fez saber que a vida comercial do primeiro volume «nunca saiu do vermelho», e quando assim é as portas do futuro fecham-se sem remédio para alguns ou, pelo menos, segundo alguns. Muito cuidado com o vermelho, portanto!
Uma Antologia da Poesia Neoclássica Portuguesa também se encontra entre os papéis de Pedro da Silveira. Será um outro projecto que ficou pelo caminho. Largas dezenas de autores encavalitados num índice em processo e alguma documentação adjacente, para eventual aproveitamento, denunciam uma vez mais o pendor acumulativo do seu organizador, a quem a falta de um editor estimulante, audacioso e imprevidente travou o que ainda ali ficaria por fazer, por pouco que fosse, além do ensaio introdutório e das essenciais notas biográficas. Idêntica incompletude tem O Livro do Gato, simpática antologia poética inspirada nos pequenos felinos domésticos, de sua predilecção diz-se, havendo transcrições feitas, uma pasta de materiais recebidos a pedido, mas nada de apresentação editorial.
Em contrapartida — e atendendo apenas ao campo literário strito sensu —, importa realçar a existência dum livro pronto a publicar. Datado de Setembro de 2001 terá sido um dos derradeiros trabalhos do autor. Contos Terrestres assim se chama, e a apresentação em jeito confessional, testamentário, é bastante esclarecedora «da espécie de vício secreto — diz ele — que me tem sido escrever contos». É absolutamente inédita, e certamente surpreendente, por isso vou ler-vos uma parte dela:
Não comecei a escrever contos agora, setentão, quando ainda os escrevo ou revejo. O primeiro escrevi-o em 1941, não completara ainda os dezanove anos, e até foi — oh horror! — publicado, permitam-me não dizer onde. E pelos anos adiante, afora poesia, escrevi outros. [...] O contista que também sou, ou continuo a pretender que sou, foi-se remetendo à gaveta. E já que virado para as revelações pessoais, faço do leitor paciente meu confessor (ou confidente, segundo prefira) com mais isto.
Além de contista, fui também romancista: de só um romance, o anunciado como a publicar em 1962 nos Sinais de Oeste e que, entre outros anteriores e posteriores títulos, tinha, catorze anos depois, quando o queimei, o último: Os Rodovalhos. [...] Pois é: fiz deste romance em que trabalhara vinte e dois anos, desde 1954, a fogueira que disse. E juntamente queimei contos, uma novela e os poemas de uma série narrativa, históricos, de intuito satírico, anti-épico. [...]. Em 1989 ou já 90 encontrei num baú, entre outros papéis que nele fora guardando, vários contos anteriores àquilo, escapados por esquecidos ao auto-de-fé de 76, alguns completos, outros só em esboço. E então, antes de proceder, como logo pensei, a uma segunda destruição, decidi ler primeiro, colocando-me o mais possível na postura avaliadora de não ser o autor. E o resultado foi não me achar tanto um narrador falhado. Assim, hesitante embora, optei por dar aos salvados os retoques considerados necessários, antes de aos juntar ao posterior a 1976. [...]
Os poucos amigos meus conhecedores da espécie de vício secreto que me tem sido escrever contos acharam que os que lhes dei a ler não eram de botar fora sem mais. E um houve que a esse juízo, já encorajador, acrescentou considerar que vinham ocupar, no panorama da ficção açoriana entre Nemésio e sua geração e a seguinte à minha, quase vazio de testemunhos sobre a realidade social insulana dos anos imediatamente posteriores aos de que tratam Mau Tempo no Canal e O Mistério do Paço do Milhafre, isto é, os de 1920 e tantos a, maiormente,o meio da centúria finita.  A isto chamou o meu amigo «fazer o retrato ficcional de uma época», o que não me atrevo a julgar que tenha feito, ou só em mínima parte fiz. Dito isto, e antes de continuar, impõe-se-me por que nem pouco nem ainda menos me admito um memorialista mudado em ficcionista. Se o serem quase todos os meus contos narrados na primeira pessoa leva a supô-lo, para mim isto é apenas um modo ou jeito em que na ocasião me senti mais calhado; mas que vale o que vale o outro modo de contar, na terceira pessoa. E se nuns como nos outros há matéria autobiográfica, o mesmo se passa com a generalidade dos ficcionistas, que todos contam fundamentando-se no memorial, digamos, transposto: ajustes de contas com situações da vida, a história testemunhada de um tempo em um lugar concreto. O resto, “vestir” o experimentado na própria carne, podem chamar-lhe imaginação, até válida — e pode ser, sem maior dano — mentira do verdadeiro. E dizendo assim, um bocado embrulhonamente, não estou de modo nenhum a querer negar ou disfarçar que narrando retratei personagens que existiram numa era e lugares concretos. Só que não são instantâneos fotográficos, em que um personagem fictício até pode conter vários do real ou um destes dar vários.
[...] A literatura, já se sabe, como já pus lá atrás, faz-se de experiências vividas, não é nada sem a observação do mundo. [...] Além de provirem necessariamente do vivido ou observado interessadamente por quem narra, as ficções com tais conseguidas são ainda fruto de uma herança, ou continuidade, em que todos somos filhos e discípulos. [...]
Acho que não sou de todo destituído de sentido crítico, especialmente em se tratando do alheio. Sobre o próprio, exigente embora, já se sabe: o pai de filhos feios tende a achá-los bonitos; até por se não culpar, o que chamo a mim, não metendo agora no caso os meus amigos leitores conselheiros de alguns destes Contos Terrestres— contos porque os conto, na minha maneira de contá-los; terrestres... de acordo com o vindo nos dicionários.
Como disse acima, isto foi escrito em Setembro de 2001 e Pedro da Silveira faleceu em Fevereiro de 2003, e hoje é-nos impossível saber se tentou ao menos que algum editor, continental ou insular, se interessasse por este livro de prosas breves. A gaveta dum escritor de quase 80 anos, arredado dos círculos literatos e das casas editoriais de um tempo novo, e por feitio sem especial paciência já para se maçar com tudo isso, tende a ser funda e compassiva. O silêncio e a indiferença da posteridade imediata acabarão, uma vez mais, por fazer o resto, na ausência de herdeiros activos ou de outra e nova geração de escritores disposta a descobrir ou redescobrir nos que a precedeu — até lê-los já seria bom... — algo que importe fixar e sobretudo não a ameace num país em que leitura como hábito de primeira necessidade é coisa de poucos.
Mutatis mutandis para o muito que Pedro da Silveira recolheu e compilou de literatura popular, e que no seu espólio abunda num magma caótico mas de borbulhar persistente e resistente. Romances e outras rimas da tradição açoriana agrega praticamente 700 folhas nas caixas 10 e 11. Outro monumento etnográfico é Como se traz em dizer. Novos subsídios para o Rifoneiro dos Açores, com 305 folhas, a que se juntam 162 de materiais de trabalho, todas elas na caixa 7. Nove contos populares da Ilha de São Jorge reunidos e apresentados por Pedro da Silveira tem 22 folhas na já referida caixa 10. A vida dos marinheiros florentinos e corvinos também lhe inspirou, em 1983, um projecto de folheto de «literatura de cordel» com antecedente notório na Ode ao Rio de Nemésio (1965) e noutras «brincadeiras» de Ruy Cinatti e de José Blanc de Portugal logo em 1974-75. Mas também aqui é preciso admitir que até o próprio legado da geração de folcloristas e linguistas açorianos que havia inspirado Pedro da Silveira se esfumou definitivamente no virar do século, e que ao grande privilégio duma expressão popular diferenciada, ilha após ilha na geografia do arquipélago, não é hoje dada a devida conta «científica» ou qualquer outra, a não ser — e não quero ser injusto com ninguém — por Victor Rui Dores, na Horta. Ainda assim, chamo a atenção para Esboço duma monografia. A Fajã Grande na Ilha das Flores, manuscrito completo datado de 1955, e para o caderno de 1943 — tinha ele apenas 21 anos — em cuja capa escreveu o título Natal, Ano Bom e Reis. Apontamentos etnográficos e folclóricos | Pedro da Silveira (caixa 18).
Na parte do espólio relativa à Correspondência, encontrei uma gentilíssima carta de Luís da Silva Ribeiro elogiando Pedro da Silveira pelos seus artigos na Seara Nova de comentário do relato da viagem de José Leite de Vasconcelos nos Açores no verão de 1924, depois transportos para pequena brochura. O epistolário com João Afonso, muito abundante e regular, destaca-se de todos os outros e se não justifica uma edição anotada, merece ao menos ser estudado — quando integrada a parte inversa — como documento duma época na história recente dos Açores. O contacto entre eles começou, aliás, de forma bastante formal, em Agosto de 1962, num processo de oferta de 2000 livros das estantes de Pedro da Silveira à Biblioteca de Angra do Heroísmo, pois então o nosso florentino, após um semestre em Itália, segundo informam carimbos de fronteira num passaporte, decidira ir viver para o país de Dante e Montale. Decisão a vários e bons títulos de extremo gosto e acertada, sem dúvida alguma, mas que — por razões desconhecidas — não se concretizou. Ganhámos bastante com isso e está na hora de honrá-lo. Um pequeno esforço, caríssimos açorianos!

 

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