Feliz Natália da lenda maravilhosa
José Soares

Feliz Natália da lenda maravilhosa

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Lisboa 1967. Rua Forno do Tijolo, 22 de dezembro.
Tomava o café pós-jantar aí pelas 20h30, num fim-de-tarde chuvoso. Era uma pequena e modesta cafeteria à direita quem sobe aquela rua, a partir do Bairro das Colónias. Normal, irmos tomar café após o jantar (acho que ainda é). As cinco mesas estavam ocupadas. O televisor a preto e branco retinha os clientes no telejornal. Eu lia o “Diário Popular” da casa, ao mesmo tempo que dava um instante soslaio na TV. Assimilava o (que me parecia) mais importante das duas fontes. Afinal, era quase sempre o mesmo, tudo viciado, tudo censurado, menos a tinta preta do jornal que continuava a sujar-nos os dedos.
Alguém entra pela porta com o ímpeto de quem nada para uma tábua de salvação, tentando ao mesmo tempo fechar o pequeno guarda-chuva no interior. Sacode o mesmo e pragueja palavras imperceptíveis. De seguida olha à volta e vai ao balcão pedir um copo de vinho. De seguida, ouvi uma voz feminina e nada cristalina: “importa-se que me sente na sua mesa?”
Foi só então que demorei mais a contemplar a figura: “! Fáchavor! Respondi apontando uma cadeira.
“Que raio de tempo, não acha?” Sim, respondi. É um tempo do corisco, como se diria na minha terra…
“Não me diga que é açoriano…!”
Sim senhora. Sou açoriano de São Miguel.
“Ótimo, ótimo. Depois de um alaganço lá fora, começa a valer a pena ter entrado!”
“ Com licença. Aqui tem o seu vinho, Dona Natália.” - interrompeu o empregado.
“Obrigada Alfredo.”
Olhando-me: “Eu, já sabe como me chamam. E você?”
Sou José e chamam-me Zé ou Zéca.
“Ahhhhh, José. O que dormiu com Maria… “ - Gargalhou a Senhora.
“Desculpe Zé. Estou a brincar”.
Não se desculpe Dona Natália, que eu também gosto de uma boa piada.
“Você é crente, Zé?”
Por cultura imposta…

“Que resposta mais original! Crente cultural? - Indagou a Senhora, levando o copo aos belos lábios e tragando um bom gol de vinho.”
Bem… - engasguei - a igreja obriga!
“A igreja não ! Este… (baixando a voz e aproximando-se) regime! Este maldito regime.”
Não respondi, nem sabia fazê-lo. Eu era ainda muito jovem para toda àquela bagagem intelectual. Só me veio à cabeça uma única afirmação e foi essa que usei:
Felizmente que estamos no Natal…!
“É. Felizmente. Você não tem saudades da nossa Terra?”
Sim Senhora. Muitas, respondi de imediato.
Mas a Senhora Natália é de onde?
“Eu? Da Fajã de Baixo. E você, Zé?”
Eu sou de São José.
“Ouça Zé. Você conhece a Graça, não?”
Sim Senhora. É logo aqui acima… - respondi, tentando dizer algo de  tarêlo.
“Bom. E conhece o bar da Natália, o Botequim.
Ahhhh! A Senhora tem um bar…
“Sim. Tenho um bar. Anda. Vou mostrar-te.”
E lá subimos ao Largo da Graça. “Hoje decidi que havia de fazer uma caminhada, mas não debaixo daquela chuva! Pronto. É aqui o Botequim.”
Entramos e logo uma barulheira soou quase em uníssono: “NATÁLIA”.
“Olá, Olá, Olá a todos. Trago-vos o meu conterrâneo achado na Forno do Tijolo há menos de uma hora. Chama-se Zé e é dos Açores, mais concretamente da minha Ilha de São Miguel.” - e virando-se para mim: “pronto Zé… espera. Ainda não me disseste o teu nome! Zé de quê?”
Soares, Senhora. José Soares.
“Ah! Muito bem, Soares. Vou atirar-te a estas feras. Mas são boas feras. Fica por aí e vai falando com um e com outro”.
Grande Natália. Hoje medito na sorte que tive em conhecer algumas das figuras que marcaram gerações. E Natália Correia certamente que foi das que mais marcaram aquela Lisboa que eu conheci.

*lusologias@gmail.com

 

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