Os carros da minha vida
Chrys Chrystello

Os carros da minha vida

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Aos nove anos o meu sonho era ser motorista de táxi para poder andar de carro todo o dia. Nessa década de 1950 havia poucos carros na família. Em frente a nossa casa vivia a Tina cujo pai era taxista e que eu invejava, mandando-lhe singelas mensagens, numa caligrafia certinha da 3ª ou 4ª classe, que depositava na caixa de correio, sem jamais ser correspondido.
 O Liceu Rainha Santa Isabel ficava nas traseiras do Liceu Alexandre Herculano e lá íamos ver a saída das meninas, quando a PSP não nos enxotava, pois para tal estava destacada. Dizem que em Lisboa era diferente, mas no Porto não se misturavam os sexos. No 3º ou 4º ano (hoje 8º) comecei a ter boleia na viatura dos Bombeiros atribuída ao vice-presidente da Câmara (Eng.º Veiga de Faria) e ao Vereador Barbot, pais de colegas. O carro dava um salto, com as quatro rodas no ar, quando acelerava na descida da Av.ª Fernão de Magalhães, onde há o Hotel Vila Galé. Parecia que o estômago ia para o tejadilho. Nunca esqueci a sensação. Quase regurgitava o pequeno-almoço. Transportados de carro, nesses dias eram poucos, apesar de haver nomes bem-sonantes da nossa praça. Da juventude evoco o enorme De Sotto dum primo, o Opel Olympia 1951do avô e o Vauxhall 1953 dum tio.
No ano de 1965 mudei para o Liceu Normal D. Manuel. Na vizinhança havia o liceu Carolina Michaëlis que a irmã frequentou com colegas jeitosas. Lembro-me de as ir buscar no carro na esperança de convívio, graças às boleias de sábado de manhã (havia aulas até ao meio-dia). Era um divertimento sociocultural de relevo, ir buscar as pequenas à saída dos liceus. Íamos do Colégio da Paz no Marquês ou Colégio do Rosário na Av. da Boavista para virmos a tempo da saída no Carolina. Costumávamos variar de carro indo pedir carros aos primos e amigos para em carros diferentes impressionar as pequenas.
Depois comecei a tomar parte em ralis como navegador, primeiro num Mini Cooper S, depois num Ford Escort Cosworth Lotus 1600. Anos intensos, entre ralis e treinos no velho Opel Kapitän 1958 ou no Volvo “Marreca” PV 544, percorrendo tudo o que era estrada municipal ou caminho de cabras.
Um dia, na florestal de Gondarém, saiu uma manada de vacas e quase embatíamos num pelourinho. Raramente saímos da estrada, exceto no primeiro rali de iniciados no Cooper S. Partimos de Santa Luzia (Viana do Castelo) e a meio da florestal chocámos com um penedo. O carro ficou com a frente desfeita, o motor no lugar do pendura e o sobressalente no meu lugar.
Num lustre percorremos Portugal (um milhão de km era a estimativa) por estradas que nenhum cristão visitara. Era comum faltar à universidade, acordar o Taka, ir tomar café a Guimarães, almoçar em Valença e dar um salto ao Gerês. Nas velhinhas estradas nacionais, estreitas e cheias de curvas, passando por tudo que era aldeia e lugarejo, a média superior a 30 km/h não era má. Do Porto a Vila Real (100 km) chegava a demorar-se duas horas (fizemos pouco mais de uma hora). Do Porto a Lisboa, antes da autoestrada, era proeza para três horas e meia (fizemos duas horas e dez minutos). Os “normais” demoravam até cinco horas. Arrepio-me a pensar nessas viagens. Nas estradas mais recônditas de Trás-os-Montes raramente se encontrava movimento, para além de uma ou outra viatura pachorrenta de carga ou um pequeno trator (só surgiram nessa década). Outras vezes íamos para sítios onde nem um café existia ou telefones públicos. Ainda se não tinham inventado os telemóveis e a rede TLP Telecom, era incipiente nas zonas remotas.
Outras vezes aproveitávamos os feriados, como o 1º de dezembro (primeiros nevões de inverno), para dar uma volta maior. Normalmente Gerês, Alvão e Marão. Muito mais longe fomos em 1970, a Trás-os-Montes (Vila Real, Bragança, Vimioso, Azinhoso). Estivemos em Outeiro, entre Bragança e Vimioso, onde nunca uma viatura entrarapela porta do castelo. A população veio fazer perguntas. Muitos nunca tinham visto um carro pois jamais haviam saído de lá. Era como se estivéssemos em plena Idade Média. Ficamos a dormir a primeira noite no Azinhoso, depois de termos passado a reta de Vale da Madre (antes de Mogadouro) a mais de 120 km/h no Austin Cooper S, debaixo de forte nevão. Depois Foz Coa até à Serra da Estrela.
Repeti numa romagem de saudade, a saga de milhares de quilómetros, entre 1996 e 2005, por estradas secundárias que percorrera nesses tempos áureos na década de 1960-70. Vi-as definharem sem melhoramentos, com um ou outro remendo de alcatrão, a maioria esburacada e sem manutenção, enquanto as juntas de freguesia locais e o IEP (Instituto de Estradas de Portugal) se digladiam a ver de quem é a incompetência de não-limpeza das mesmas. Hoje as estradas, municipais e secundárias, estão em pior estado do que na época.
O desbaratar de riquezas sempre foi apanágio do país que sempre viveu à custa dos outros, primeiro dos escravos, depois especiarias, ouro do Brasil e mais recentemente de Bruxelas.
Antigamente, o perigo maior nas estradas transmontanas, beirãs ou minhotas, eram os burros, carroças ou carros de bois. Ainda havia simpáticos cantoneiros a acenarem nas estradas e a cortarem as ervas. Até hoje muitas delas não tornaram a ver outro cantoneiro e as casas dos cantoneiros estão infelizmente destruídas, desabitadas e em ruínas. Podiam ter sido aproveitadas para turismo se alguém tivesse visão, mas isso era pedir muito aos portugueses. É um sacrilégio ver o abandono a que foram votados tantos ícones numa era em que o que existia e funcionava bem foi substituído por estruturas modernas que não funcionam.
É uma dor de alma viajar no séc. XXI e ver pombais, casas de cantoneiros, estações da CP (com espólio de maravilhosos azulejos ao abandono), velhas pontes (algumas notáveis obras de arquitetura) e ramais do caminho-de-ferro a criar mato. É criminoso perderem-se as vias de pequena bitola onde circulavam ronceiros, os comboios que estabeleciam o contacto entre o Portugal profundo e o centro. Ignóbil Estado que delapida património da Humanidade!
Voltando à Rádio Renascença onde comecei o jornalismo em 1967, íamos acompanhando ralis e provas de velocidade. As últimas, em cuja cobertura estive, foram os Circuitos de Vila Real e Vila do Conde 1972, onde, com o Pedro Roriz, ajudara o falecido José Fialho Gouveia na reportagem para a RTP. Ali tivemos o também falecido, Adriano Cerqueira a contar as voltas ao circuito (não se usavam computadores para contar as voltas mas cronómetros para calcular os tempos, e a organização não dispunha de meios nem dados durante a prova). O Adriano regressara de Angola do serviço militar e queria voltar ao automobilismo. Mais tarde foi a sua face na RTP e voltei a trabalhar com ele no Circuito de Macau (1981 e 1982).
Além das provas em que entrei com o amigo “Taka Takata” (Ludgero Carvalho de Abreu no Cooper S 1300, e Ford Escort Cosworth Lotus 1600), uma vez, em reportagem no Minho, na Serra da Cabreira (ou Senhora da Graça, Fafe?) pedi que me deixassem usar o telefone fixo (não havia telemóveis), a resposta foi uma carga de tiros de chumbo que mal deu tempo de correr em fuga.
Isso deu-me a luminosa ideia de ter telefones de campanha (da tropa) nas provas cronometradas (início e fim dos troços) o que foi feito, pela primeira vez no mundo, nos ralis e provas de velocidade. Passamos a ter um ascendente enorme sobre os restantes repórteres com o envio em tempo real dos resultados dos troços cronometrados. Foi a primeira vez. Neste período (1970-71) no Estádio das Antas pusemos, pela primeira vez no mundo, um microfone sem fios dentro de um carro, enquanto o campeão nacional (“Xico” Santos) dava voltas à oval. A primeira vez que se utilizou uma transmissão radiofónica dum carro em prova, hoje banal com as câmaras de vídeo em todos os pontos das pistas e carros. Talvez fosse a coisa mais inovadora que fiz em toda a vida.
Em Timor (73-75) tinha uma mota de 125 cc, um Jeep Willys MB e por vezes guiava um Fiat 128 do meu colega de casa.Quando cheguei a Macau em janeiro 1977 contabilizava mais de 200 viaturas diferentes conduzidas desde os modestos Fiat 850 e 128 do meu pai a um Ferrari Dino dum primo, dum modesto 2CV ao favorito Citroën DS ou Citroën SM (Maserati), os bem-amados Skoda 1000 MB ou o Auto Union SP 1000 descapotável (Audi). Nem hoje conseguiria recordar todas as marcas e modelos. Tempos de puto acelera, marcados apenas por um desastre, só com danos materiais na irreverência irresponsável de jovens anos. Assim se preenchia o vazio da vida demasiado ocupada.
Comprei em Macau um Fiat 128 3-P Coupé-S, 1100 cc, M-61-63, todo artilhado, cabeça rebaixada, com uma potência surpreendente que me iria servir durante ano e meio, o primeiro carro a ficar oficialmente registado em meu nome. Estive quase a inscrever-me no Grande Prémio de Macau. Mais tarde, este potente carro seria assassinado, quando as seitas adicionaram sal à gasolina, em vingança por ter exposto a extorsão a candidatos a funcionários, desmascarando fraudes na admissão de pessoal menor (serventes, condutores, auxiliares) em que os aspirantes a uma vaga pagavam (às seitas) antecipadamente um ou dois anos de vencimento.
E o carro em breve o troquei por um novo que custou três meses de vencimento, último modelo Toyota Cellica A40 Liftback ST 1,6 litros (segunda geração Cellica não existente em Portugal). Em 1982 a Embaixada australiana (Hong Kong) mandou fazer as malas até dezembro, para não perder a autorização de emigrar. Fui trocar o Toyota Cellica, por um citadino, Nissan Sunny 1.6 Hatchback, que consegui importarrapidamente de Hong Kong (o carro precisava de estar registadoem meu nomepor seis meses para ser isento de encargos e taxas de importação à chegada à Austrália).Ali andei 11 anos maravilhosos de boas memórias desse Nissan Sunny, que foi trocado por um Toyota Paseo em 1992 e que o divórcio levou.Uma cunhada emprestou para segundo carro, um Holden, cognominado “Dominic” enquanto ela passeava pelo mundo, mas implicava muita manutenção e um consumo exorbitante de 24 litros aos 100 km (automático EK 1961, 2.26 litros, 6 cilindros,56 kW, 3 velocidades, que ia dos 0 - 100 km/h em 24,9 segundos. Foram produzidos 150 mil exemplares.
Vim para Portugal no fim da década de 90 e aqui foi a época do Ford Fiesta e do velho Fiat Uno do meu pai, antes de me converter ao Audi A4, o último dos quais com 170HP já me acompanha há 14 anos e deve levar-me ao crematório pois não tenciono deixá-lo, a menos que ele me deixe antes do meu prazo de validade expirar.


*Jornalista, Membro Honorário Vitalício 297713 (Australian Journalists´ Association MEAA)

 

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