Cabo Verde sempre no horizonte
Vasco Rosa

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Centenário de Pedro da Silveira, VI

Faz parte do propósito desta série de artigos dedicados à vida e obra de Pedro da Silveira dar conta da variedade dos seus interesses e relações culturais, pelo que não podia faltar o seu contacto com escritores cabo-verdianos, cujo comentário e estudo crítico muito claramente distinguiu o agora quase centenário florentino dos pares açorianos da sua geração. Aproximação de distintas insularidades especialmente marcante nos anos 1940-50 moveu jovens escritores sensíveis ao ar do tempo (o mesmo é dizer ao neo-realismo dominante num regime de ditadura de sentido inverso) e envolvidos em revistas literárias ou tertúlias de café, mas não foi capaz de manter laços consistentes nas décadas seguintes, até ao advento da revolução de 1974 e depois dela.
Não assim com Pedro da Silveira, que n’O Diabo de Vera Lagoa dedica a sua crónica de 3 de Outubro de 1978 ao surgimento do romance de Henrique Teixeira de Sousa Ilhéu da Contenda,1  aproveitando para um novo relance sobre a literatura cabo-verdiana no seu todo histórico, bem para lá da importante revista Claridade que ele ajudara a tornar conhecida nos Açores e no continente. Dir-se-ia que Cabo Verde jamais saiu da sua linha de horizonte, pois no texto que adiante se republica pela primeira vez podemos — devemos! —reconhecer o investigador literário perpétuo que acabara de publicar a sua Antologia da Poesia Açoriana, trazendo à leitura contemporânea autores antigos e esquecidos, e que para Cabo Verde vem assinalar — em idêntico gesto, para uma realidade afinal distante — outros nomes a fixar e outras revistas literárias a ter em conta. Caso para fazer pensar que essa outra literatura insular nunca deixou de ser um cuidado seu, mesmo quando o panorama literário português mudou significativamente sob directa influência francesa na década de 1960. Interesse comum que vale a pena sublinhar como factor de aproximação de ambos foi o folclore insular: Sousa publicou «recolhas etnográficas» no Fogo em 1954-55, quando Silveira fazia outro tanto nas Flores.
Não sabemos ainda até onde essa revisitação se prolongaria no tempo, ou se Pedro da Silveira escreveu sobre os romances seguintes de Teixeira de Sousa, que ele diz aguardar com expectativa. Muitos papéis — incluindo correspondência — precisam ainda de ser lidos para se alcançar um retrato completo (quanto possível...) desta invulgar figura açoriana. Nesse desígnio, o empenho de cada instituição por si mesma e a cooperação entre todas afigura-se decisivo. Pessoalmente, estou muito curioso por saber que vai a Biblioteca Nacional fazer pela memória de um dos seus melhores — e não se pode ter dúvidas quanto a isso! —, depois de duas décadas de indiferença e letargia do seu espólio. Despertá-la para isso já teve de ser feito. Se se ergue ou não da inércia e da irresponsabilidade, logo se verá.

Literatura cabo-verdiana
A que era a mais pobre das colónias portuguesas de África era, em contrapartida, a única que, soada a hora da sua independência, se podia orgulhar de possuir já literatura própria, remontável, em manifestações desgarradas, ao século XVI (André Álvares de Almada) e desde o século XIX reflectindo um a um todos os movimentos renovadores das literaturas europeias. Uma literatura, acrescente-se, bilingue, como bilingue é o povo de Cabo Verde: escrita, maximamente, em português, mas também, na poesia lírica e, mais raro e nestes últimos anos, no conto (Sérgio Frusoni [1901-75] e outros), em crioulo.
Bem sei: os que se ocuparam da literatura cabo-verdiana, como literatura autonomizada ou como (primeiro) regionalismo cabo-verdiano da literatura portuguesa, tenderam (e alguns ainda tendem) a considerá-la nascida nos anos 30 deste século: a partir de quando apareceu a revista Claridade e através dela e depois por livros se tornaram conhecidos Jorge Barbosa, Baltasar Lopes (Oswaldo Alcântara como poeta) e Manuel Lopes. O acertado, porém, parece-me considerar-se a Claridade, para a literatura de Cabo Verde, semelhantemente a como se considera o Orpheu para a literatura portuguesa deste século: o primeiro grande sinal da sua «revolução» modernizante. A diferença (ou diferenças) está (estão) em que o Orpheu e a Claridade apareceram em tempos (1915 e 1936) diversos e também em meios cujos problemas não eram os mesmos. (Ainda se podiam pôr outras coisas, claro está. Mas isto é uma crónica, não um ensaio...)
Na verdade, é logo depois de meados do século passado que a literatura cabo-verdiana começa a tomar corpo, a crescer sem hiatos. Revelam-se então os primeiros poetas românticos do Arquipélago Crioulo, quais Rodrigo Aleixo e Guilherme Dantas (também narrador), e não tarda que surja também o seu primeiro romancista: José Evaristo d’Almeida, autor d’O Escravo [1856]. E logo vão vindo outros poetas e prosadores: José Bernardo Alfama ([1861-19121,] um dos primeiros que deram ao crioulo notável tratamento literário); António da Costa Teixeira, Freitas e Costa, João Augusto Martins, António de Arteaga, etc. Um verdadeiro milagre, se tivermos em conta (como se impõe) a pequenez e a pobreza de Cabo Verde. E não vale, para o caso, o reparo de que a actividade literária dos cabo-verdianos em grande parte se ia processando fora do seu meio; porque, dados os condicionalismos dele (afinal idênticos aos do Brasil colonial e aos dos Açores até agora), não podia ser doutra maneira. O que sim importa é que a literatura cabo-verdiana, mesmo em condições adversas, não deixou de se ir edificando, cada vez mais a ganhar tipicidade.
O que fica dito aponta a que a Claridade, por importante que haja sido (e foi mesmo) na definição da nova literatura cabo-verdiana, afinal se insere nacontinuidade dela.
Antes, houvera em Cabo Verde aqueles escritores que já citei e, ainda mais importantes, Eugénio Tavares (que não é só o lírico das Mornas, pois é também excelente contista em português e um vigoroso panfletário cuja pena se pôs sempre na defesa dos humilhados e ofendidos), em suma, houvera muito e muito: esse espanto que verdadeiramente é uma literatura rica brotando duma terra da qual sobretudo se fala dizendo das secas, fomes, emigração crónica.
Talvez me calhe ainda a oportunidade de me ocupar da revista Raízes dirigida por Arnaldo França [1925-2015],2  na qual os novos cabo-verdianos de pouco mais de 20 anos agora vão dando conta de si a par dos «claridosos» e dos cinquentões ou à beira da Certeza (1944).3  Hoje, sem propósitos de crítica, direi só meia dúzia de palavras sobre Teixeira de Sousa e o seu romance, há poucos meses editado, Ilhéu de Contenda — suponho que o primeiro romance cabo-verdiano vindo a público após Cabo Verde se tornar independente.4
Natural da Ilha do Fogo, onde é ambientado o seu romance,5  Teixeira de Sousa pertence como escritor à geração cabo-verdiana imediatamente posterior à «claridosa». Começou a fazer-se notar por volta de 1942, com alguns contos aparecidos em revistas e volumes colectivos (por exemplo, Contos e Poemas). Nesse tempo, chegou até a anunciar um romance, O Último Veleiro, que não publicaria, e, depois, remeteu-se ao silêncio. Entretanto, médico de profissão, serviu em Timor e, durante longos anos, nas suas ilhas. O que quer dizer que pôs acima dos anseios de glória literária, a que tinha de resto todo o direito de aspirar, a vontade de ser útil, imediatamente útil, aos seus semelhantes; melhor dito: adiou os sonhos (e, com isso, foi-se enriquecendo de experiência). Em 1972 publicou um livro de contos (Contra Mar e Vento)6  e ei-lo agora estreado romancista.
Ilhéu de Contenda tem um pouco da experiência do médico e, muito provavelmente, alguns dos seus capítulos roçarão mesmo pelo autobiográfico. Mas é sobretudo, ao menos no meu ver, o romance da ilha do Fogo que precisava de ser escrito e o é por quem a conhece como de lá. Neste particular, e sem perder nada como romance, ficará, parece-me, como um depoimento histórico-sociológico de primeira ordem: porque o Fogo, seus descendentes de morgados semiarruinados e os outros estratos sociais, uma certa «fricção» meio de classes meio de encontro-desencontro de brancos e mulatos e negros, é mesmo o que nos dá Ilhéu de Contenda. Um romance, não hesito dizê-lo, que se insere na linha do romance neo-realista, mas sem as jacas do panfleto sem os primarismos da análise psicológica que prejudicam quase todos os da mesma tendência cá publicados nos tempos em que Teixeira de Sousa foi um dos benjamins do nosso neo-realismo.
Como já frisei, esta prosa não a quero crítica: se tanto, notícia — e também uma saudação amiga ao romancista que há trinta e tantos anos prometeu O Último Veleiro, para logo em seguida trocar o exercício da literatura pelo (no seu caso) apostolado da medicina. E, sendo saudação, é também, como não podia deixar de ser, pretexto para um incitamento: que Ilhéu de Contenda seja o primeiro e não apenas o único romance de Teixeira de Sousa. Quem começa assim assume a obrigação de continuar.7
Pedro da Silveira
O Diabo, Lisboa, 3 de Outubro de 1978, pp. 19, 22.

 

1 O colófon do livro publicado pela Empresa Pública Século Popular indica Maio de 1978 como data de impressão. No Agradecimento preliminar, o autor refere-se a «este livro, concluído em 24 de Abril de 1974».
2 Raízes publicou-se na Cidade da Praia de 1977 a 1984, com 21 números. Não tem ainda uma versão digitalizada que a torne legível aos de hoje.
3 Certeza: Folha da Academia, publicada em São Vicente sob direcção de Eduíno Brito Silva e Nuno Miranda, imprimiu apenas dois números, em Março e Junho de 1944.
4 Seria adaptado ao cinema em 1995 por Leão Lopes (Santo Antão, 1948-), com canções cantadas por Cesária Évora. Trata-se também do primeiro filme de autoria e produção cabo-verdianas.
Em 2002 a prestigiada editora Actes Sud, de Arles, publicou Un Domaine au Cap Vert, ou seja Ilhéu de Contenda traduzido por Françoise Massa.
5 A nota de 200 escudos de Cabo Verde — em circulação deste Setembro de 2015 — traz a efígie do escritor ( aqui reproduzida), e ao lado a cratera do vulcão da Ilha do Fogo.
6 Publicado pela editora Prelo, de Lisboa.
7 Assim fez Teixeira de Sousa, que publicou ainda, quase sempre nas Publicações Europa-América: Capitão de Mar e Terra(1984); Xaguate (1987); Djunga (1990); Na Ribeira de Deus (1992); Entre duas Bandeiras (1994); Oh Mar, de Túrbidas Vagas (Plátano, 2005). Faleceu em Oeiras em Março de 2006, com 85 anos.

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