A pior lei de 2021: a orgânica   dos serviços do parlamento regional
Arnaldo Ourique

A pior lei de 2021: a orgânica dos serviços do parlamento regional

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“Este tipo de matéria exige redobrados cuidados porque a AL-RAA é um órgão diferente dos serviços administrativos da administração direta da RAA. A alteração deste tipo de lei, sobre o órgão máximo da Autonomia Constitucional, requer, não apenas uma concordância certeira, mas muito mais com o modelo adequado a este tipo de serviço: a parte dos serviços administrativosque vão servir as funcionalidades da política legislativa e das funções dos deputados.”

 

Quando pelas 8:30h, hora dos Açores, abrimos o Diário da República e vimos o título “Decreto Legislativo Regional 36/2021/A, 30-11, orgânica dos serviços administrativos da Assembleia Legislativa da Região Autónoma dos Açores” ficamos admirados: num ano de pandemia, vacinação e economia, novo governo e de coligação, e sustentado em acordos de incidência parlamentar, e dentro do 1º ano de governação, não fazia sentido que se fizesse tal alteração legal dos serviços; tanto mais, aliás, que as circunstâncias desse tipo de governo multidisciplinar implicam a alteração do Regimento Parlamentar para ajustar comissões em função dessa nova realidade política, mas não a lei orgânica administrativa. Mas quando, pelo Preâmbulo, percebemos que não se tratava de uma elementar alteração, e que estávamos perante uma nova lei, com revogação da anterior, a nossa admiração passou a sobressalto: como seria possível existir matéria suficiente para alterar a lei orgânica? e, pior, revogando a lei anterior e criando um regime inteiramente novo? E depois da leitura do diploma, do sobressalto passamos ao sentimento de perplexidade: não havia necessidade de uma nova lei, não havia necessidade sequer de alterar a lei; e, pior, trata-se de uma lei inteiramente extemporânea (a inexperiência por vezes conduz o político a querer alterar o mundo, quando deveria primeiro aprender o que é o mundo) e inteiramente desnecessária (a inexperiência por vezes conduz o político a imaginar que um sentimento é uma necessidade). Por tudo isso essa lei é estranha nas atuais circunstâncias. Este tipo de matéria exige redobrados cuidados porque a AL-RAA é um órgão diferente dos serviços administrativos da administração direta da RAA. A alteração deste tipo de lei, sobre o órgão máximo da Autonomia Constitucional, requer, não apenas uma concordância certeira, mas muito mais com o modelo adequado a este tipo de serviço: a parte dos serviços administrativos que vão servir as funcionalidades da política legislativa e das funções dos deputados.
Mas além de estranha é uma má lei. E, desde logo, no 1º argumento legal da lei: «Considerando o atual quadro pluripartidário inovador da Assembleia Legislativa da Região Autónoma dos Açores, que encerra em si um novo paradigma político na cena da democracia açoriana, urge proceder à atualização dos procedimentos, organização, estruturação e tramitação dos seus serviços e instrumentos de gestão administrativa e financeira, com vista à sua eficiência, racionalização e otimização, por forma a garantir uma maior transparência». Ora, não existe na AL-RAA nenhum novo quadro pluripartidário: o parlamento açoriano sempre teve (vários deputados de) vários partidos; e não é um menor ou maior número de partidos que o torna multipartidário. Ele é e sempre foi pluripartidário e multipartidário e nessa componente não existe qualquer novidade, nem inovação. Em 2º lugar, se a ideia é a de querer dizer pluripartidário por referência aos partidos vários que sustentam o governo, continua em errático discurso: a organização administrativa do parlamento tem que ver com a governança administrativa – que naturalmente é muito distante do pluripartidarismo. Esse fim e justificação, pois, não é objetivo nem justificativo; e é estranho que seja usado – como se agora estivéssemos no início primordial da política – quando ela existe desde 1976.
Do ponto de vista da legística nada foi alterado; aliás, ainda se mantém “competências” do órgão, quando o vocábulo correto é “atribuições”: a 1ª é expressão abrangente, porque engloba as efetivas atribuições do órgão e também as milhentas funcionalidades e competências decorrentes dessas atribuições; a 2ª, é específica, sobre o poder decisório direto (que depois se desenvolve em variadas competências). É um erro frequente confundir uma coisa com a outra. Dois exemplos, o certo e o errado: “o órgão X tem como atribuições a gestão do arquivo documental e do respetivo pessoal administrativo” e“o órgão X tem como competências...”. No 1º caso, as atribuições são duas: a gestão do arquivo e o seu pessoal; e para isso exercerá milhentas competências legais e orientações programáticas do serviço onde se insere. No 2º caso confunde-se as “competências” com “atribuições”. A feitura duma lei é tão artística como a criação de um romance, mas têm uma diferença abissal: o romance obedece a parâmetros de literatura (só gosta quem gostar, mesmo que bem escrito), a lei a parâmetros de Direito (universalidade de leitura, precisão e certeza). Num romance podemos escrever uma frase simples, mas profunda e sabemos que nem todos a vão sentir do mesmo modo; na lei a norma é retilínea e desprovida de moralidades; a norma tem beleza artística, não por via do sentimento que o romance propõe, mas por via da exatidão. Um romance é um perfume que tem nuances consoante o espírito do leitor; a lei é um perfume geométrico e em que todos os pontos estão ligados entre si numa harmonia de lógica pura. As nossas vidas são guiadas pelo economismo (o que é de fácil verificação a todos), mas um país é mais fielmente retratado pela qualidade das suas leis (o que é acessível a poucos).
Mas esta lei tem objetivos, como acima vimos. Mas não é isso que acontece. Existem alterações que não justificam uma lei toda nova, a exemplo, que o pessoal de segurança colabora com as forças de segurança pública. Na lei anterior os serviços do Parlamento estavam previstos, a Secretaria Geral, os Sectores Financeiro, de Arquivo e Expediente, de Recursos Humanos e Serviços Gerais, de Atividade Parlamentar, de Tecnologias, Sistemas de Informação e Inovação, o Gabinete de Assessoria Técnica e a Biblioteca e Centro de Documentação; mas a nova lei remete a sua criação para uma outra lei – isso é... a pura desnecessidade de produzir duas leis parlamentares para tratar do mesmo assunto. É criado um novo órgão, o Núcleo de Gestão pela Qualidade, tendo como função, entre outras, “promover a definição e divulgação da missão, visão e objetivos estratégicos da Assembleia..., assente num sistema de gestão pela qualidade, definindo e gerindo a implementação das ações preventivas e corretivas”; e, no entanto, é composto apenas por dirigentes, não pertence nenhum pessoal administrativo ou técnico e ao seu presidente é atribuída (mais) uma remuneração.
Ou seja, o parlamento passa a ter duas leis sobre a mesma orgânica parlamentar administrativa e mais um órgão remunerado. Isso não é transparência, não é modernidade e não tem nada que melhore a qualidade do Parlamento e muito menos da legislação. Como cada lei regional em 2021 custou 332 mil euros, logo, as duas leis da organização administrativa da AL-RAA custarão mais de 630 mil euros; uma novidade autonómica bem negativa. Ou seja, muda-se a lei que nada melhora, que torna o funcionamento do parlamento mais caro e o que era de uma lei passa a ter duas leis. Não é apenas a pior lei de 2021; é o pior exemplo de muitos anos.

 

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