Dois tributos a Raul Brandão
Vasco Rosa

Dois tributos a Raul Brandão

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Centenário de Pedro da Silveira,VII

O Diário dos Açores continua a associar-se às comemorações do centenário do conhecido escrito florentino Pedro da Silveira, através de uma parceira com a respectiva organização das comemorações, graças ao nosso colaborador Vasco Medeiros Rosa, editor, jornalista e investigador, que tem dedicado especial atenção à vida e obra de Raul Brandão. Em 2019 publicou ‘Raul Brandão e os Açores’. Foi o curador de duas exposições na cidade do Porto sobre Raul Brandão, decorrentes das comemorações dos 150 anos do seu nascimento. Hoje, publicamos mais um seu artigo.

 

O livro de Raul Brandão sobre os Açores tem hoje créditos quase inultrapassáveis, um sortido de edições e até uma norte-americana e em breve uma brasileira, mas nem sempre foi assim — muito longe disso! —, como demonstrei no meu Raul Brandão e os Açores. Motivo, edição e recepção de «As Ilhas Desconhecidas» de 1927 (Companhia das Ilhas, 2019).
Foi Pedro da Silveira quem — mais que qualquer outro, mais até que Nemésio, amigo íntimo do escritor — tentou valorizá-lo e reeditá-lo e só a ele se deve, de facto, a edição Perspectivas & Realidades, de 1978, a primeira quase meio século depois, que além de um prefácio seu de grande valor, retomando artigo de jornal de Junho de 1953 — em que já exigia aos editores nacionais atenção a esse livro fora de série —, contém notas de rodapé, para correções ou comentários breves, que deveriam ser tidas em conta na fixação do texto de qualquer futura reimpressão.
Como escrevi há três anos, «ao contrário de outros projectos editoriais da obra completa, que subestimam o livro açoriano de Raul Brandão, a P&R lançou-o depois das memórias do escritor, dando-lhe uma prioridade e uma importância que até aí ninguém lhe tinha concedido» (p. 40).
A oportunidade de pesquisar para as comemorações do seu centenário permitiu-me localizar, há dias, o artigo de Silveira (10 de Dezembro de 1980) que adiante se divulga pela primeira vez, e que jamais fez parte de qualquer bibliografia de Raul Brandão — sequer da «adenda» publicada em 1985 por Manuela Rêgo, colega de Pedro na Biblioteca Nacional.
Em 1980, decorria meio século sobre a morte do escritor, a Biblioteca preparou uma importante exposição reunindo a literatura, a fortuna crítica e pela primeiríssima vez a pintura de Raul Brandão, mas o modo informado como Pedro aqui se refere a Maximiliano de Azevedo convence-me de que ele já dedicara à biografia do homenageado uma pesquisa concreta, que não transparece mas que importa ponderar.
É que, só em 1982, o espólio de Brandão seria entregue à guarda da instituição do Campo Grande, em Lisboa.
Não há já quem o possa comprovar, é certo, nem sequer que tenha sido por acção pessoal do açoriano que os papéis do portuense ainda à guarda de Bertha, uma senhora de vetustos 75 anos, viúva de Manuel Mendes (1906-69), se tenham encaminhado dum destino incerto e ingrato para a segurança da casa-forte da Biblioteca Nacional.
Mas todo o zelo patrimonial que sempre moveu Pedro da Silveira não poderia ser indiferente a esse premente assunto.
O texto traz-nos a promessa duma avaliação da influência de Brandão na obra de Nemésio, creio que a pensar concretamente em Corsário das Ilhas, de 1954.
Não consta que a tenha feito, e no congresso internacional de 1998 preferiu outro tema.
Traz-nos também a revelação do seu «medo» (sic) de voltar à ilha natal, as Flores, e ver «crimes de destruição», aquilo a que chama «o meu mundo assassinado» — em que um aeroporto mal localizado e o término a prazo da cabotagem teriam certamente a sua quota-parte.
E traz-nos ainda — ou traz-nos sobretudo — a «lembrança» (sic) às recentes instituições autonómicas do Arquipélago do seu dever de homenagem ao autor de As Ilhas Desconhecidas, «o maior dos escritores de fora que sobre elas e o seu povo escreveram».
 Quatro décadas depois do repto feito, que tal se concretize no centenário de Pedro da Silveira parece-me justíssima e bela retribuição, quer a um quer a outro, sem dúvida, mas também porque os juntaria num mesmo acto e ocasião.
E seria certamente especial alegria para Pedro se a Ilha das Flores o fizesse em primeiro lugar...

                                     Vasco Rosa

Raul Brandão e as Ilhas

Passou há dias (sexta-feira, 5) o cinquentenário da morte de um dos maiores escritores portugueses da geração simbolista: o autor do Húmus, Raul Brandão.
Um grande, tantas vezes à beira de genial escritor. E talvez porque grande, quase nada lido.
Disse autor de Húmus [1917], mas não vai ser a propósito desse romance, uma obra-prima ainda por descobrir por esses que se dizem críticos; da obra de Brandão destacarei, agora, As Ilhas Desconhecidas [1927].
Reli este livro não há muito, num desses dias em que me dá para refazer na retina, em saudade, as terras do meio do mar de onde ando ausente vai em trinta anos; reli-o, mais demoradamente os capítulos sobre o Corvo e as Flores, e foi como das outras vezes: o encanto, doce e amargo, de estar lá de novo.
 Pelo que toca à gente, aos vultos humanos que perpassam no livro (mais vultos, fantasmas do que vivos reais), já nenhum existirá, nem outros cuja humanidade muito lhes corresponda; as paisagens, sei que também sofreram, nalguns casos, modificações deturpadoras — nas Flores, como se sabe, a engenharia à portuguesa destruiu uma vila para pôr um aeroporto, sem o menor respeito por casas e tudo o mais que representava séculos de história, com a agravante de ser perfeitamente possível plantar esse progresso noutra parte da ilha; e no Corvo também, já depois de 1974, aplanaram outro aeroporto que, tenho a certeza, virá a reconhecer-se imprestável.
Estes crimes de destruição são até, para mim, o que mais faz com que me amedronte (é o termo) tornar, ver o meu mundo assassinado.
Li quase todos os livros que se escreveram sobre os Açores, por portugueses e por estrangeiros.
 Entre eles não faltam os que trazem páginas onde as ilhas se retratam, terra e gentes, com verdade.
 Lá está o dos Irmãos Bullar, Um Inverno nos Açores e um Verão no Vale das Furnas, lá estão algumas inesquecíveis páginas do Príncipe de Mónaco; e, para não dar um rol enorme, as páginas de Bulhão Pato e as desse bom livro que é Descobrindo Ilhas Descobertas, de Hipólito Raposo [Edições Gama, Lisboa, 1942; o primeiro capítulo, dedicado à Ilha de Santa Maria, é datado de Março de 1940].
 Mas nenhum soube ver os Açores como os viu Brandão.
Digam o que quiserem d’Os Pescadores [1923], outro dos livros do escritor em que o descritivo se assume não já como boa prosa só, mas como uma pintura deslumbradora, mágica; n’As Ilhas Desconhecidas é que sobretudo avulta essa qualidade de Brandão: pintar com palavras.
Foi em 1924, em Junho, que Brandão embarcou para os Açores, por onde peregrinou, salvo erro, até fins de Agosto.
Permaneceu um mês inteiro no Corvo e nas Flores, percorrendo essas duas ilhas como no tempo era possível: a pé, de burro, a cavalo.
Não se esquivou a incomodidades, seja nas deslocações, seja quanto ao alojamento.
Ia para conhecer a terra e tudo fez por conhecê-la.
Não, nada há na sua viagem que lembre turismo, a colheita da impressãozinha ligeira.
E talvez por isto é que o livro acabou per suscitar iras de alguns plumitivos locais para quem escrever sobre os Açores e dos que lá vivem sempre deve ser o refalsado descritivo em que tudo é paradisíaco, um paraíso em que a vida é angélica, uma felicidade geral.
Nem a política deixou de se meter no caso; à conta de que a viagem de Brandão coincidiu com a da chamada «Missão Intelectual», promovida por José Bruno Carreiro, na qual se integravam alguns monárquicos.
Para certa gente, se havia monárquicos na «Missão», logo toda ela era de monárquicos; e Brandão, bem contra seu gosto, foi identificado como uma espécie de seu antídoto republicano.
Não era assim e até na «Missão» ia, por exemplo, José Leite de Vasconcelos, um republicano histórico. Mas, que querem?, a política...
Conheci não poucas pessoas, pelos Açores fora, que tinham conhecido e até acompanharam Raul Brandão.
Por exemplo, já muito velhinho (90 anos ou mais), um dos «sebastianistas» que ele encontrou na Lomba das Flores durante a festa dum jantar do Espírito Santo.
Era o Sr. Mendonça e de sebastianista nada tinha.
Foi ele, aliás, aquele dos velhos que levou ao engano o ingénuo Brandão, dizendo-lhe que estavam à espera de D. Sebastião e contando-lhe o conto da sua vinda: num ano com três invernos e um verão e em que uma babosa (piteira) desse duas espigas.
Como se vê, não passava de conto, que Brandão «engoliu» (tal, de resto, como Leite de Vasconcelos engoliu vários)
. Conheci o velho Mendonça e também o «ruivo folgazão» Guilherme Emílio, cabo do mar do Corvo.
Este, de facto ruivo e bastante divertido, não gostou quando soube que Brandão o classificara assim: uma boa alma convenceu-o de que aquelas duas palavras, que ele desconhecia, eram insultuosas.
Quem estará hoje vivo, a 56 anos de distância, dos que lá se deram com o grande escritor, que com ele privaram?
Sei só de dois: João Morrison, da família que o hospedou na Horta, sobrinho da mulher, já então viúva, de Maximiliano de Azevedo, em cujo 4.º andar do n.º 216 da Rua da Madalena, em Lisboa, o casal Brandão coabitou largos anos; e o Dr. António de Freitas Pimentel [1901-81].
Este, natural das Flores, foi ali um dos cicerones do escritor, que já admirava e até agora admira de modo quase religioso.
 Nemésio foi outro, desde aí sempre ligado a Raul Brandão.
Gostaria de falar na influência do autor d’As Ilhas Desconhecidas na sua obra, mas o espaço já não mo permite.
Claro que muito mais havia a dizer, até porque quase nada disse.
 Termino (no espaço que ainda me resta) lembrando às autoridades dos Açores um dever que não está cumprido: homenagearem quem tão bem soube ver as ilhas, o maior dos escritores de fora que sobre elas e o seu povo escreveram.
 Lembro, mas...

Pedro da Silveira
O Diabo, Lisboa, 10 de Dezembro de 1980, p. 24.

 

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