Práticas de bloqueio geográfico e a qualidade da autonomia
Arnaldo Ourique

Práticas de bloqueio geográfico e a qualidade da autonomia

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“O Estado, a pedido da Região, ao colocar esta matéria do bloqueio geográfico e de discriminação nas vendas eletrónicas para os consumidores das regiões autónomas numa lei avulsa – coloca o assunto fora das regras gerais dos consumidores, e que é a citada lei geral de defesa dos consumidores.”

 

Foi recentemente publicada a Lei 7/2022, do 10-01 sobre a “proibição das práticas de bloqueio geográfico e de discriminação nas vendas eletrónicas para os consumidores das regiões autónomas”. As ilhas desde há muitos anos – desde que foi introduzido o formato comunicacional da atualidade em 1996 – que têm sido sujeitas a alguma incompreensão: por um lado, porque o comércio eletrónico não tem nenhum dever especial de tratar as ilhas com alguma diferença relativamente às suas populações porque lhes interessa o lucro; e, por outro lado, porque o Estado pouca atenção deu a estas matérias. Ainda existem empresas que servem açorianos praticando taxas de IVA continentais e vão usando a desculpa de que é o sistema eletrónico e que, por isso, nada podem fazer para usar as taxas insulares. Temos que dizer que estas problemáticas, pela sua novidade tecnológica, é ainda um enorme problema à escala da União Europeia; e, pois, Portugal não foge à regra. O Estado, em todo o caso, tem culpa: se tem o poder de criar as leis e os mecanismos de controlo, por que motivo isso ainda acontece? Mas, o que mais estranha é o comportamento da Região Autónoma que se dedica a produzir legislação às toneladas sobre o poderio político – mas sobre a qualidade de vida dos cidadãos as leis são rasas e raras. É neste contexto, pois, que aparece esta lei. É uma lei que foi suscitada pela Madeira, e é uma iniciativa positiva; mais ainda para nós porque os Açores não têm nenhuma, nem pensamento sequer. A iniciativa foi da Madeira em fev.2021, a Região dos Açores foi auscultada, mas nem o governo, nem a assembleia disseram alguma coisa. Esta lei, no entanto, é um excelente exemplo para se perceber que nem a Região Autónoma, nem o Estado, sabem ler corretamente a autonomia insular.
Existem muitas leis na ordem jurídica que garantem direitos dos consumidores, a exemplo: o rastreio de informação de pesca e aquicultura ao consumidor, a qualidade do arroz destinado ao consumidor final, a informação ao consumidor sobre a economia de combustível e emissões de dióxido de carbono, a proteção do consumidor de serviços financeiros. Ou seja, existem vários regimes jurídicos em função de matérias. E nesse universo, no âmbito da comercialização, existem outros tantos regimes, a exemplo: os contratos celebrados à distância e dos contratos celebrados fora do estabelecimento comercial, da responsabilidade decorrente de produtos defeituosos, dos serviços da sociedade de informação, em especial do comércio eletrónico, no mercado interno, a proibição e sancionamento da discriminação em função do sexo e a prestação de serviços de comunicações eletrónicas com período de fidelização. Estes são regimes legais criados, repete-se, em função das matérias que se quer proteger o consumidor. A estas acrescem duas leis estruturais, o regime das cláusulas contratuais gerais e a lei geral de defesa dos consumidores. E é neste quadro legal que incide o problema.
O Estado, a pedido da Região, ao colocar esta matéria do bloqueio geográfico e de discriminação nas vendas eletrónicas para os consumidores das regiões autónomas numa lei avulsa – coloca o assunto fora das regras gerais dos consumidores, e que é a citada lei geral de defesa dos consumidores. Ou seja, esta separação avulsa de regimes cria uma exceção – quando os açorianos e madeirenses também são portugueses. Os consumidores continentais usufruem das vendas eletrónicas com normalidade asseguradas na generalidade pela lei geral de defesa dos consumidores, mas os consumidores insulares para usufruírem do mesmo registo têm de usar uma lei especial ea lei geral. Ou seja, o consumidor continental é garantido pela lei geral, o consumidor insular só é garantido por duas leis. Essa separação atribui aos insulares um estatuto de menoridade – porque parece estar a tratar de uma especialidade, quando, na realidade, é uma matéria simples. E a manter-se essa prática – como já acontece em muitos matérias/diplomas, acabaremos por ter uma ordem geral para os portugueses de 1ª e uma ordem excecional para os portugueses de 2ª.
Não se confunda leis gerais com leis especiais com a cidadania que é universal. As regiões autónomas necessitam de leis especiais e do Estado: as leis do respetivo Estatuto Político, a lei de finanças das regiões autónomas e muitos outros regimes nacionais de funcionamento das regiões autonomias. Mas isso são regimes para a própria Região Autónoma – não para o cidadão. É certo que existe legislação especial para os insulares, a exemplo: leis estaduais que mantêm os preços dos livros e jornais iguais nas ilhas aos preços do continente, ou os apoios especiais para o transporte aéreo entre o continente e as ilhas; essas exceções são ajudas aos cidadãos pelo Estado, não são ajudas à própria Região Autónoma e seu funcionamento; são por ela requeridos em função da insularidade e ultraperiferia, mas destinam-se especificamente aos insulares.
E não se confunda a ordem geral (para os portugueses de 1ª) com a ordem excecional (para os portugueses de 2ª): é que a autonomia política não é uma exceção ao Estado; as leis regionais autonómicas não são exceções às leis do Estado. A autonomia é uma capacidade de fazer melhor e ao melhor “preço” se feito pelos próprios insulares, por via da subsidiariedade; e as leis regionais são resultado desse poder. A autonomia é para fazer melhor ou compensar se não se conseguir essa qualidade; as leis são o meio jurídico próprio para garantir a sua criação e desenvolvimento. A autonomia não serve para criar exceções, mas tão-só para criar projetos diferentes porque corretos face à insularidade e ultraperiferia decorrentes das necessidades dos insulares; as leis regionais garantem essa originalidade, essa diferença de fazer e concretizar.
Esta lei estadual, portanto, é boa porque garante interesses regionais das populações insulares. Mas é má na forma como foi feita: a matéria deveria estar numa secção da lei geral de defesa do consumidor, ou na do comércio eletrónico, por forma a homogeneizar a ordem jurídica portuguesa – tratando-se de forma equitativa os cidadãos insulares que também são cidadãos portugueses. Tanto mais ainda que este tipo de proibição – de âmbito nacional – só é eficaz se for feito numa lei do Estado; isto é, as regiões autónomas não têm poder para legislar com força jurídica que obrigasse as empresas continentais, e europeias, a respeitar as regiões autónomas nesse registo.
E as regiões autónomas, uma a propor e a outra a nada dizer, deveriam ter lutado por essa qualidade legislativa no interesse dos insulares – por via de que, ao melhorarem o espetro legal quanto ao âmbito e força jurídica, reforçariam a qualidade da legislação e do ordenamento jurídico. Já é de esperar que a Autoridade de Segurança Alimentar e Económica não fará a monotorização da realidade insular e que a Inspeção Regional das Atividades Económicas menos fará ainda; pelo que, apesar da lei, estes direitos, evidentemente, continuam sem efetiva garantia nas ilhas.

 

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