Manifesto anti-optimismos preguiçosos, por extenso
Mário Freitas

Manifesto anti-optimismos preguiçosos, por extenso

Previous Article Previous Article Quem adormece em democracia, acorda em ditadura
Next Article Os que, mesmo nascendo no Inverno, pouco sabem do frio Os que, mesmo nascendo no Inverno, pouco sabem do frio

Conversas pandémicas (91)

1. Definições básicas de Epidemiologia
John Murray Last (falecido a 11.09.2019, com quase 93 anos) foi um canadiano, nome maior da Saúde Pública, cientista e professor, cujos textos de referência são usados pelas principais escolas de Saúde Pública mundiais, bem como por epidemiologistas de todo o mundo.
John Last deu inúmeros contributos para a literatura de referência de Saúde Pública, especialmente na qualidade de editor científico. Entre um número imenso de obras, editou 4 edições do “Public Health and Preventive Medicine” (1980, 1986, 1991, 1998), conhecido como “Maxcy-Rosenau-Last”, sendo editor-emérito da 15ª edição (2008), e como editor fundador, produziu 4 edições do “Dicionário de Epidemiologia” (1983, 1988; 1995, 2001). A Edição Portuguesa do “Dicionário de Epidemiologia”, traduzida pelo Prof Cayolla da Mota, é uma obra fundamental na secretária de qualquer médico de Saúde Pública. Dela extraí hoje 5 definições:
EPIDEMIC (EPIDEMIA e EPIDÉMICO). [do grego clássico epi (sobre), demos (povo)]: ocorrência, numa comunidade ou região, de casos de doença (…), claramente acima da expectativa normal. A comunidade ou região, bem como o período de tempo a que se refere a ocorrência desse excesso de casos, devem ser especificados com precisão.
O número de casos indicativo da presença de uma epidemia [por um agente transmissível] varia de acordo com o agente, dimensão, tipo e estado imunitário da população exposta, experiência, ou falta de experiência prévia com o agente responsável e com o tempo, local e forma de ocorrência; a “‘epidemicidade” está portanto relacionada com a frequência relativa da doença na mesma área e na mesma população, na mesma estação ou período do ano.
A ocorrência de 1 único caso de doença transmissível há muito ausente da população em causa, ou a primeira invasão por uma doença até então não reconhecida na área, requere notificação imediata, e uma investigação completa.
A ocorrência de 2 casos de uma tal doença, associadas no espaço e no tempo na população em questão, é considerada como prova suficiente para confirmar uma epidemia [ou “surto epidémico”, se se preferir). (…)
PANDEMIC (PANDÉMICO): Uma epidemia que ocorre numa vasta área geográfica [à escala mundial] e afecta um grande número de pessoas. [Algumas pandemias, como as de gripe e as de SIDA, podem afectar todos os países e regiões do Mundo].
ENDEMIC DISEASE (DOENÇA ENDÉMICA): A presença constante de uma doença ou de um agente transmissível [infeccioso ou parasitário] numa dada área geográfica ou num dado grupo populacional. Pode também dizer respeito à prevalência habitual (corrente) de uma dada doença em tal área ou grupo.
HOLOENDEMIC DISEASE (DOENÇA HOLOENDÉMICA): Uma doença em que a elevada prevalência de infecção cedo na infância, e a afectação da maior parte da população infantil, leva a um estado de equilíbrio tal que a presença da doença é muitíssimo menos frequente na população adulta. Malária, nas regiões endémicas [e o sarampo antes das campanhas de vacinação] são exemplo de doenças holoendémicas.
HYPERENDEMIC DISEASE (DOENÇA HIPERENDÉMICA): Uma doença que está constantemente presente, com elevadas taxas de incidência e/ou de prevalência, e que afecta todos os grupos etários por igual.
Numa entrevista, em 2014, no seu 88. aniversário, John Last disse:
“... o nosso dever como autoridades de Saúde Pública é reunir, avaliar e avaliar as evidências sobre os problemas de Saúde Pública que afetam a população que temos ao nosso cuidado, mas também para comunicar essas evidências ao público em geral, juntamente com as ações necessárias para controlar os problemas de Saúde Pública que identificarmos.
Devemos estar preparados para defender as nossas decisões, às vezes contestadas por representantes eloquentes de poderosos grupos de interesses.
Para sermos eficientes nesse papel, precisamos de conhecimento político - às vezes a mais importante das habilidades necessárias.”

2.    Endémico não significa inofensivo. Ponto.

No dia 24.01.2022 foi publicado, na conceituadíssima “Nature”, o artigo “COVID-19: endémico não significa inofensivo”, da autoria de Aris Katzourakis, Professor de Evolução e Genómica da Universidade de Oxford.
O autor começa por uma afirmação forte: “suposições cor-de-rosa colocam em risco a saúde pública – os formuladores de políticas devem agir agora para moldar os próximos anos.” Como refere o autor a palavra ‘endémico’ tornou-se uma das mais mal utilizadas da pandemia, levando a suposições erróneas, que “encorajam uma complacência equivocada”. “Uma infecção endémica é aquela em que as taxas são estáticas – não aumentam, não diminuem, o que significa que a proporção de pessoas que podem adoecer equilibra o ‘número básico de reprodução’ do vírus (o número de indivíduos que um indivíduo infectado infectaria).”
“As constipações são endémicas, assim como a malária (…); por outras palavras, uma doença pode ser endémica, generalizada e mortal. A malária matou mais de 600.000 pessoas em 2020. 10 milhões adoeceram com tuberculose no mesmo ano e 1,5 milhões morreram.
Endémico não significa que a evolução dominou um patógenio, para que a vida volte ao ‘normal’. O coronavírus está para ficar – eis o que isso significa”. O autor confessa-se frustrado quando os políticos “invocam a palavra endemia como desculpa para fazer pouco, ou nada. Há mais na política de saúde global do que aprender a viver com o rotavírus endémico, a hepatite C ou o sarampo. Afirmar que uma infecção se tornará endémica nada diz sobre quanto tempo pode levar para atingir a estas e, quais serão as taxas de casos, níveis de morbilidade ou taxas de mortalidade ou quanto de uma população – e quais os sectores – será susceptível.”
O autor recorda que o mesmo vírus pode causar infecções endémicas, epidémicas ou pandémicas: depende da interação entre o comportamento de uma população, a sua estrutura demográfica, a suscetibilidade e imunidade, além do surgimento de variantes do vírus. “Mesmo que uma região atinja um equilíbrio, isso pode ser perturbado quando uma nova variante, com novas características, chegar.”
“Existe o equívoco de que os vírus evoluem ao longo do tempo para se tornarem mais benignos. (…) Ainda assim, muito pode ser feito para mudar a corrida evolucionista a favor da Humanidade:
1. devemos pôr de lado o optimismo preguiçoso.
2. devemos ser realistas quanto aos níveis prováveis de morte, invalidez e doença. As metas estabelecidas devem considerar que o vírus circulante corre o risco de dar origem a novas variantes.
3. devemos usar – globalmente – as formidáveis armas disponíveis: vacinas eficazes, medicamentos antivirais, testes de diagnóstico e uma melhor compreensão de como parar um vírus transmitido pelo ar através do uso de máscaras, distanciamento, ventilação e filtragem de ar.
4. devemos investir em vacinas que protejam contra uma gama ampla de variantes.
O autor, recordo virologista da Universidade de Oxford, conclui:
“A melhor maneira de evitar o surgir de variantes mais perigosas, ou mais transmissíveis, é impedir a disseminação irrestrita, e isso requer muitas intervenções de saúde pública, incluindo a equidade das vacinas.
Quanto mais um vírus se replica, maior a hipótese de surgirem variantes problemáticas, provavelmente com maior disseminação.
A variante Alpha foi identificada pela primeira vez no Reino Unido, a Delta foi encontrada pela primeira vez na Índia e a Omicron na África do Sul  – todos lugares onde a disseminação era desenfreada.
Pensar que a endemicidade é leve e inevitável é pior do que errado, é perigoso: leva a humanidade para muitos anos de doença, incluindo ondas imprevisíveis de surtos.
É mais produtivo considerar que as coisas podem ficar más, se continuarmos a dar ao vírus oportunidades de nos enganar.”
Aqueles que sistematicamente, pelo jardim à beira-mar plantado, ditam o fim da pandemia, e encantam as massas com “cantigas de amigo”, nada perdem em ler este artigo. Dizem estes que “é benéfico ser infectado” por uma doença nova, da qual pouco se sabe. E morrer, ou ter complicações, será o cúmulo desse benefício…?

3. E consulta com o seu médico de família, consegue…?

Uma história de sucesso no Quebec, nesta Pandemia, são as clínicas dentárias. Há registos de apenas 1 surto, numa clínica dentária, no Quebec. Qual é o segredo, e como poderia o mesmo ser aplicado noutros lugares?
As clínicas dentárias no Quebec foram obrigadas pelo Ministério da Saúde, em Maio de 2020, a melhorar a ventilação nas suas instalações. Os dentistas usam máscaras N95, protectores faciais e as clínicas usam purificadores de ar portáteis, com filtros HEPA.
Aplicar tal no sistema de ensino, e melhorar a ventilação nas salas de aula, poderia ser uma excelente ideia.
Todos os dias deparamo-nos com um número de crianças infectadas, nas escolas, absurdo. Dezenas de milhar de crianças foram infectadas nas últimas semanas, uma significativa parte não vacinada.
Desde Dezembro passado, surtos nas escolas semearam silenciosamente infecções, nesta 5ª onda. As férias escolares e a “semana de contenção” atrasaram esta sementeira. Mas, uma vez que houve pressa em reabrir as escolas, plenas de salas mal ventiladas, gerou-se um ressurgimento de infecções, numa população ainda sem vacinação completa.
Os surtos escolares levam a uma maior transmissão comunitária. Mais transmissão comunitária leva a mais hospitalizações.
E, infelizmente, mais hospitalizações levam a mais mortes, durante esta 5ª onda, impulsionada pela Omicron, quer directamente pela doença, quer pelo esgotar dos recursos de saúde, que não chegam para atender aos doentes não-COVID19, muitos deles com descompensações de doenças crónicas, fruto de um sistema de cuidados de saúde primários há muito a precisar de recuperar o tempo perdido.
Se quiser, neste momento, efectuar a marcação de uma consulta com o seu médico de família, para quando será a consulta marcada…? Percebe o valor de combater com toda a energia, sobretudo em Pandemia, listas de espera, cirúrgicas, ou de consultas…?
[Quem quiser pode reescrever a História, passada, presente ou a futura. Desvalorizar as vidas perdidas. As COVID19 e as não-COVID19. E o sofrimento provocado por esta Pandemia.
A minha esperança de que se tenha aprendido algo com esta Pandemia é diminuta. É um hábito. Quando acontecer a próxima lá voltará o Pandemónio, e as pantominas. Pantomineiros nunca nos faltarão. Fim.]


*Médico graduado em Saúde Pública e Delegado de Saúde

Share

Print

Theme picker