Viver o Montanha  Pico Festival
Rodrigo Dias

Viver o Montanha Pico Festival

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Abro os olhos e cerca-me a escuridão da gruta. Estou sentado no chão sobre o biscoito — o rasto negro que a lava deixou — ao meu redor, escuto apenas as gotas de água que não cessam de cair na rocha. O sopro do saxofone surge como o vento que fustiga a montanha e então a música improvisada do Luís Senra transporta-me para outro tempo. Estamos dentro da Gruta do Soldado e juro que sou capaz de ouvir um lamento, parecem-me as vozes de todos aqueles que utilizaram as profundezas da terra para sobreviver. Sinto-me pequeno e humilde. O som das gotas funde-se com a melodia. Lembra-me as lágrimas que não choro, aquelas que me atravessam a alma e que guardo em lugares secretos. O saxofone cala-se e aparecem as palavras da Filipa Gomes: volto a recolher-me nas minhas entranhas… volto a recolher-me e a encontrar dentro de mim a viagem. Estou no ventre da ilha e não há como não contemplar a minha própria viagem. Tenho quarenta e um anos, uma família, casa, trabalho e amigos — uma vida abençoada e feliz — e ainda assim parece que falta algo. Falta-me a Natureza.
Visitei, várias vezes, o Pico durante os últimos vinte anos. Fiz tudo o que o típico turista faz: vi caudas de baleia a emergir das ondas do oceano, subi a montanha durante a noite para contemplar o nascer-do-sol e provei o verdelho com nuances a maresia. Aos poucos a ilha dos mistérios foi ganhando um lugar especial no meu coração, mas foi com a descoberta em 2020 do Montanha Pico Festival organizado pela MiratecArts que se instalou definitivamente o sonho de me vir a tornar picaroto. Este ano voltei, pelo terceiro ano consecutivo, a participar e a experiência tornou a ser especial.
O festival começou com o documentário “A Vaguear pelo Oceano” do realizador croata Toma Zidic. Lembro-me de encontrar o Toma há dois anos atrás. É impossível esquecer o seu olhar curioso de quem vê para lá do que é óbvio. Na altura, Toma vogava pelas ilhas açorianas filmando, buscando a essência das coisas. Sentado no auditório da Madalena, ao ver surgir no grande ecrã as imagens e os sons que ele tinha captado, percebi que estava perante um filme singular. Mais do que uma narrativa, “A Vaguear pelo Oceano” é um olhar que se sente, se escuta e saboreia. À medida que o filme avançava, eu sentia-me a ter acesso a um lugar secreto — gentilmente, espreitava o coração dos Açores.
Não posso deixar de expressar a minha tristeza por o auditório estar tão vazio. Éramos umas vinte almas deslumbradas. Percebo que a pandemia e todas as suas regulações (muitas vezes kafkianas) não ajudaram. Mas aquele filme merecia uma sala cheia de picarotos orgulhosos na sua incrível terra. Fez-me lembrar como também eu, às vezes, tenho dificuldade em sair do conforto da minha casa para ir ver o que a minha cidade tem de melhor. Quantas vezes não dei por mim a mostrar Lisboa a amigos de fora, só para me surpreender com aquilo que eu dou por adquirido na minha própria terra.
No dia seguinte fomos presenteados por duas performances do projeto Abaixo da Superfície com a dupla Luís Senra (saxofone) e Filipa Gomes (poesia). A primeira aconteceu na Furna Nova perto do Aeroporto e a segunda na Gruta do Soldado em São João. É difícil descrever a experiência de contemplar a arte dentro de grutas naturais. Há um certo mistério que se revela no encontro entre a arte humana e a arte da Natureza. Sempre que conto a alguém sobre o projeto Abaixo da Superfície, os seus olhos arregalam-se. Não sei se de incredulidade, se de inveja.
A nossa participação terminou com uma tarde de chá na casa da montanha. Protegidos do mau tempo que se tinha instalado nas terras altas e aquecidos por chá açoriano, conversámos sobre Turismo Sustentável. Enquanto turista no Pico, que é o que fui durante tantos anos, refleti sobre uma questão essencial: como é que, enquanto comunidade, podemos garantir que a essência dos Açores (captada pela lente do Toma) ainda poderá existir daqui a trezentos anos? Quando somo turistas, temos a tendência para querermos ter a melhor experiência no menor curto espaço de tempo possível. Tratamos os lugares que visitamos como se fossem descartáveis. É um comportamento egoísta e irresponsável. Durante a tertúlia, dei por mim a desejar que os meus bisnetos, e os seus bisnetos, ainda venham a ter acesso à natureza pouco editada que existe na ilha do Pico. Concretizar esse desejo é responsabilidade de todos nós, especialmente daqueles que definem a estratégia que querem para o turismo nesta ilha.
Não posso terminar este texto sem expressar um profundo agradecimento ao Terry Costa. Um dia ouvi alguém dizer que há um Pico antes do Terry e um Pico depois do Terry. É fácil perceber porque é assim. Tem uma mente a fervilhar de ideias e o coração generoso dos picarotos.

 

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