Silveira e Nemésio
Vasco Rosa

Silveira e Nemésio

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Centenário de Pedro da Silveira, VIII

Completam-se hoje, 20 de Fevereiro, 44 anos sobre a morte do extraordinário Vitorino Nemésio, um escritor tão singular que só às pressas e com grande dose de simplificação pode ser comparado a qualquer outro no quadro nacional ou regional. O seu estatuto de figura central da literatura açoriana, ou da literatura feita nos Açores ou da literatura feita por açorianos (como cada qual a quiser designar), é incontestável, e como qualquer outra — ou mais do que qualquer outra — a sua obra precisa de frescas e actualizadas revisitações, capazes de integrá-la no panorama cultural contemporâneo. Mas precisa também de ser revisitada no seu próprio tempo, em particular para se ver como é que a sua presença literária e cultural foi sendo recepcionada nos Açores ao longo do século XX (uma abordagem omissa, entre outros, nos ensaios de José Martins Garcia —A Vida e a Obra, Arcádia 1978; À Luz do Verbo, Companhia das Ilhas 2019 —, mas que concede surpresas amargas quando se constata a sua ausência de décadas nas páginas dos jornais insulares, quer como colaborador ou cronista replicado, quer sob a forma de noticiário sobre a carreira académica e literária deveras preenchida desse pródigo «filho da terra»).
Contudo, não é este — naturalmente — o espaço se quero pretexto para o fazer (nem o signatário tem fôlego e pernas para subir a tal pico!), mas tal reexame jamais poderá contornar o depoimento que Pedro da Silveira publicou num jornal de Lisboa poucos dias após o funeral de Nemésio (e que no especial dia de hoje aqui resgatamos). Sobretudo porque — e isso interessa sobremaneira à afirmação da importância das comemorações do centenário do florentino — basta esse memento «escrito a quente», na dilacerante emoção da perda e do luto, para se medir quão conhecedor Silveira era da intimida de criativa do terceirense, «exilado» (sic) como ele em Lisboa há longo tempo.
Mas não apenas isso. Veja-se como — de imediato — apelou para a compilação da obra dispersa do autor de Mau Tempo no Canal, que «darão sete ou oito nutridos volumes de prosa vária ensaística e para-ensaística, além de outro de contos», de modo a garantir que essa fatia do seu labor literário não se perdesse ou fosse subestimada. Tão aguda — e rara — consciência patrimonial açórica, que se diria herdeira ou tributária da fascinante lucidez de José do Canto, é que não teve parceiros nem descendentes à sua altura. Tudo contado, quase 50 anos depois esse desafio ainda hoje está por cumprir...

Vasco Rosa

Adeus Nemésio!

Neste momento ainda me é impossível dizer coisa com coisa sobre o que não hesito considerar o maior açoriano do século XX. Condenado já, rondado pela morte, sabia que estava. Mas agarrava-me teimosamente à esperança de que pudesse viver mais alguns meses, um ano... Uma esperança, confesso, um tanto egoísta: a de que não acabasse sem ter concluído o romance que estava a escrever.
E eis que começo por uma revelação concreta, de interesse. Na verdade, o grande escritor manteve-se activo até há poucos meses, mais concretamente, até ao começo do último Dezembro. Título do romance que deixou inconcluso, mas mesmo assim publicável: O Cárcere.1
Como se sabe, Nemésio tem na sua bibliografia dois romances: o quase juvenil Varanda de Pilatos, que é de 1927[1926 no original]2 e nunca foi reeditado, e Mau Tempo no Canal, cuja primeira edição apareceu em 1944 e que alguns críticos justamente consideraram um dos maiores romances escritos no século XX por um escritor de língua portuguesa. Mas depois de Mau Tempo no Canal Nemésio nunca desistira de voltar ao romance, ao contrário do que possam supor os muitos que, cada vez mais, o iam considerando pelo que dava aos jornais, sobretudo autor de «literatura comestível», ou seja um cronista, embora invulgarmente talentoso. Sim, depois do Mau Tempo no Canal, Nemésio escreveu alguns capítulos d’A Cruz de Ferro, que, como relatos dum tio Mateus Queimado, quase todos vieram a tornar-se contos integrados n’O Mistério do Paço do Milhafre (1949) e já nos anos 50, O Farol não Responde, que, salvo erro, não foi além do segundo capítulo. Assim, O Cárcere, ambientado na sua nativa Praia da Vitória, era o terceiro dos romances que se propunha no seguimento do que lhe deu justa mas, para ele, inibidora fama — e digo assim porque é fora de dúvida que a alta qualidade do Mau Tempo no Canal pesou no que determinaria o escritor a sucessivamente desistir de levar a cabo A Cruz de Ferro e O Farol não Responde. Já quanto a O Cárcere, não houve inibição: foi este percalço da morte.
Não tive a dita de ler, ou ouvir o autor ler, naquela sua tão característica entoação, nenhum dos capítulos acabados d’O Cárcere. Basta-me, porém, o testemunho dos comuns amigos que, nos últimos tempos, dispunham de mais tempo para conviverem com Nemésio. Porque todos me dizem da alta qualidade desse romance, quase inesperada num homem que ia nos 76 anos. Quase inesperada, escrevi; mas já emendo a mão — e é que de repente me vêm à ideia os últimos poemas de Nemésio: as sátiras ao PREC, n’O Dia, tão frescas, tão atiradas, que antes se diriam dum jovem no vigor da idade do que dum septuagenário. De resto, a demonstrar que Nemésio foi jovem até ao fim, aí estão também os artigos que ultimamente deu a vários jornais de Lisboa e a O Primeiro de Janeiro, do Porto.
O ter falado dos últimos artigos de Vitorino Nemésio faz-me lembrar que o escritor deixa dispersa uma obra vastíssima, que justo seria se recolhesse e fosse publicada em volumes. Ao acaso da memória, recordo-me das «leituras semanais» do Diário Popular, escritas mais ou menos desde 19473 e que, quase todas, não passou a livro. Entre essas «leituras», que muitas vezes não eram isso, mas capítulos memoriais, mesmo pequenos contos, até agora me ficou gravada na memória a que consagrou a outro grande romancista açoriano, Alfred Lewis, ou Alfredo Luís, o autor de Home Is an Island, há pouco mais de um ano falecido na Califórnia. Nemésio foi quem primeiro o revelou aos leitores  destas bandas, os quais, valha a verdade, nem por isso se mostraram muito curiosos de o conhecerem. (Já agora, abro parêntesis. Para contar como não foi possível editar-se em português o romance de Alfredo Luís: porque os editores abordados por mim4 nesse sentido todos foram firmes em que o nome do autor devia manter-se inglesado e nada de «versão portuguesa», como ele queria, mas sim tradução — qual se de um puro americano se tratasse e não de um açoriano que emigrara para os Estados Unidos. Entendiam, os alveitares, que assim é que era comercial...).
De Alfredo Luís – Alfred Lewis me hei-de ocupar, numa destas descosidas crónicas. E também, se vier a jeito, de Matilde do Canto, a romancista de Dona Josefa.
Os dois constituem, com Nemésio, este na posição mais elevada, a trindade dos grandes romancistas açorianos do nosso século. Nemésio, já se sabe, escrevia em português (embora também tenha na sua bibliografia um livro de poemas — La voyelle promise, 1935 [1933 no original]  — em francês); mas os outros dois escreveram em inglês (Luís-Lewis) e em francês (Matilde do Canto — que, aliás, nasceu suíça, mas se estreou em português, como contista, numa revista da Ponta Delgada).
Mas o que queria dizer era só, agora, da urgência de reunir toda a vastíssima obra dispersa de Nemésio. Se bem avalio, os seus dispersos darão sete ou oito nutridos volumes de prosa vária ensaística e para-ensaístiva, além de outro de contos, este pequeno mas de modo nenhum inferior. E já agora aí vai outra revelação: numa das nossas últimas conversas chegámos à conclusão de que o escritor tinha fora de livro verva de uma dúzia de contos, o mais antigo dos quais, «Santo Entrudo», publicado no Diário de Lisboa em 1923. Nemésio perdera o texto do conto, de que lhe obtive uma fotocópia, pois queria revê-lo; porventura, se visse a necessidade de tanto, reelaborá-lo.
E a poesia que deixou na gaveta? Até onde posso saber, o poeta tinha arquivados, à espera ou não de seriá-los, poemas que darão mais dois ou três livros.
Como o leitor já de sobejo notou, a crónica é um puro desarranjo. Simplesmente, logo ao começá-la, preveni que ainda não me sinto capaz de escrever, ou dizer, coisa com coisa sobre este que é o maior açoriano do século XX — o grande mestre a quem a minha a geração deveu, pelo exemplo que nos davam os seus livros, o apoio de que precisava para ser mesmo açoriana e não uma esquisita malta de epígonos diluída na literatura à moda de Lisboa...
Claro está, não foi só isto que lhe devemos, como açorianos e como escritores. A dívida é, na verdade, muito maior. Repare-se, por exemplo, em que foi ele o primeiro e maior obreiro da glorificação de Roberto de Mesquita, e também, como já disse, o «descobridor» (em 1952?) de Alfredo Luís – Alfred Lewis.5 Por outro lado, que admirável animador ele era para os jovens poetas ou prosadores açorianos que o procuravam, aqui em Lisboa ou na Terceira, quando, quase todos os anos,6 lá ia tomar o seu «banho» de açorianidade miilitante!
Que mais dizer agora? Pois que sim, se trate de lhe reunir toda a obra, a dispersa e a inédita. E sobretudo que continuem a lê-lo — até porque se trata dum dos poucos escritores do nosso tempo a quem a língua portuguesa de facto deveu, mesmo nas páginas menores, o servi-la como se serve o grande, o máximo amor duma vida.
Foi pena, repito, que Nemésio não concluísse O Cárcere. Mas, paciência! Afinal, na ficção tanto como na poesia, ou no ensaio, na biografia, em todos os géneros literários que abordou na adultez, ele deixou obra que não morre. Podemos dizer adeus ao homem; o escritor, esse, continua e continuará vivo!

1Certamente aproveitando esta preciosa informação de Pedro da Silveira, — um mês depois, a 30 de Março de 1978 —o Diário de Notícias publicou, por cortesia da família de Nemésio, o primeiro capítulo deste romance.

2Nas últimas folhas do livro, Vitorino Nemésio — em nota datada de 12 de Setembro de 1927 — acrescentou um In Memoriam do editor Júlio Monteiro Aillaud, o perfectus librarius a quem deveu «em última instância a perspectiva, quase sempre ilusória mas acarinhada de novatos, de um culto e largo mercado que me difunda os livros». A página é quase histórica, pois Nemésio refere-se à «indulgente e enternecedora amizade de Raul Brandão e Aquilino Ribeiro, que espontaneamente se constituíram meus advogados junto do editor magnífico».

3Na verdade, começou a 12 de Dezembro de 1945. O título deste primeiro artigo é «O livro aberto».

4Sobre Silveira e Lewis v. Vasco Rosa, «Dois florentinos esquecidos», in Grotta. Arquipélago de Escritores, n.º 3, 2018-19, pp. 166-75. Pode também ser lido na página do grupo público de facebook criado para estas comemorações: MesadeAmigos2022.

5Mesquita e Lewis foram figuras de proa da literatura da Ilha das Flores, e o papel de Nemésio na sua valorização não poderia deixar de ser sublinhado neste depoimento, acção em que de resto Silveira também participou, como aliás aqui relata e não podia deixar de ser...

6«Quase todos os anos», mas só depois de 1953, quando enfim voltou aos Açores, para escrever Corsário das Ilhas, título colhido do nome duma república de estudantes em Coimbra.

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