Em novo tempo de guerra, e de invasão militar de um país soberano por outro, imperialista e truculento, vale a pena trazer ao público açoriano o artigo que este mesmo jornal publicou na primeira página da sua edição de 27 de Maio de 1943 — treze dias após a invasão de Paris pelo exército alemão de Adolf Hitler — em defesa e louvor da França, por Pedro da Silveira, que tinha então, basta fazer as contas, apenas 20 anos. A precocidade dos seus juízos éticos e estéticos poderá espantar, mas também o facto de estar a par de duas revistas literárias francesas, uma das quais a mensária Fontaine, criada em 1939 na capital da Argélia, que um ano antes repercutira o celebérrimo poema de Paul Éluard «Liberté», de início saído noutra revista literária, Choix.
A força moral dos artistas e dos escritores dum país com fortíssimas tradições culturais como a França, acreditava Silveira, seria capaz de brilhar nas trevas mais escuras e manter viva a esperança de uma «nova sinfonia», todavia reivindicando para os poetas — se quiserem, para o viver poético — a primazia nessa dura luta de resistência. E de facto, não estava errado, pois logo dois meses depois, em Julho, sairia clandestinamente a colectânea L’Honneur des Poètes — um título esclarecedor —, 94 páginas para 23 autores sob cautelosos pseudónimos, na chancela da importante casa Éditions de Minuit.
Pessoalmente, não conheço na imprensa portuguesa semelhante defesa da liberdade e da literatura a pretexto de evento tão impactante como a entrada dos nazis em Paris.1 A Censura na periferia atlântica, provavelmente menos feroz, atenta ou capaz, pode — é certo — ter ajudado um bocadinho nisso, mas a bravura do florentino não deixa de estar à vista. Em segundo plano, haverá de notar-se a influência da cultura francesa no jovem poeta que, seis anos mais tarde, escreveria a magnífica, longa, surpreendente «Saudação a Blaise Cendrars» que — há 18 meses! —, quando a campanha deste centenário verdadeiramente começou, comparei ao poema de Fernando Pessoa dedicado ao norte-americano Walt Whitman.
Vasco Rosa
França eterna
«A França não morreu [...] porque diremos com Daniel Simond — um povo que canta na profundidade mais sombria da noite [...] é um povo que vela!...» (Agostinho Gomes, in Vértice, n.º 2, p. 110).
A França não morreu nem morrerá! A pátria de Hugo e de Flaubert, de Berlioz e de Coubert é de sempre: ela, pela expressão da sua Arte, embora a afoguem em sangue e a assole o fogo devastador, viverá sempre, como vive a Grécia de Homero e de Aristóteles, de Pitágoras e de Fídias.
O povo francês chora, mas esse choro não é de cobardes e de vencidos; chora os erros do passado, encarando com esperança o seu futuro, construindo-o — em bases sólidas. Chora, orgulhosamente: «Je suis le Roi de mes douleurs», na lira de Aragon.
Não importa o que virá: Monarquia ou República, Giraud ou De Gaulle. Importa a França, longe de todos os preconceitos políticos, essa pátria de todos os sem-terra, o país hospitaleiro por excelência, de que disse, com tanta verdade, um escritor cujo nome [Thomas Jefferson] não me ocorre agora: «Todos os homens têm duas pátrias, a sua e a França». É certo: monarca destronado, idealista fugido do seu país à violência da perseguição de um governo autocrata, nunca a França lhes recusou asilo. Um país assim não desaparece, não pode desaparecer!
E é por causa da sua Arte (não se trata simplesmente da pintura, escultura e arquitectura; trata-se de toda e qualquer manifestação espiritual, a própria ciência mesmo) e das suas excelentes qualidades morais, inatas no seu povo, que a França não morrerá. Ela ressurge nitidamente. Do Reno aos Pirenéus, à Argélia, à remota Polinésia, na Inglaterra, nos Estados Unidos, na Argentina, em toda a parte onde vive, até nos próprios campos de concentração de prisioneiros na Alemanha, o francês prepara-se para reconquistar a pátria perdida. Revistas como Fontaine e Poésie, etc., são eloquente afirmação, em poemas doloridos mas plenos de esperança, desta reconquista (não se trata aqui de reconquista pelas armas, trata-se antes da reconquista dos franceses a si próprios, ao seu ideal nacional), desta fé no porvir: «Mon amour n’a qu’un nom c’est la jeune espèrance | J’en retrouve toujours la neuve symphonie | Et vous qui l’entendez du fonde de la suffrance, | Levez les yeux beaux fils de la France» (Aragon, [«Cantique à Elsa»]).
A França vive pela voz dos seus Homens de letras, pela voz dos seus Artistas, mas, embora conte actualmente na prosa valores como Sartre e Cocteau, é principalmente pela voz dos poetas, nomeadamente Aragon, Emmanuel Superville, Llanza del Vasto, etc., que ela se nos mostra, humanamente, em toda a pujança da sua força espiritual e interior.
Os eclipses de momento nunca a poderão sepultar na treva eterna. A França não morreu, nem morrerá e, passada a tormenta, ela surgirá maior que nunca a extasiar o Mundo com os produtos da sua cultura.
Ilha das Flores, Maio de 1943.
Pedro da Silveira
Correio dos Açores, 27 de Maio de 1943, p. 1