Ucrânia: A vida não deixa  de nos surpreender

Ucrânia: A vida não deixa de nos surpreender

Previous Article Previous Article Câmara Municipal de Ponta Delgada ambiciona vencer candidatura a Capital Europeia da Cultura 2027
Next Article Madalena do Pico recebe até ao final desta semana dádivas para enviar para Ucrânia Madalena do Pico recebe até ao final desta semana dádivas para enviar para Ucrânia

Há precisamente dois anos, estávamos a viver o primeiro impacto da pandemia provocada pelo SARS-CoV-2. As notícias, nos inícios de fevereiro de 2020, falavam de uma nova doença que tinha surgido na China mas, pouco depois, apareceram os primeiros casos na Europa e, a 2 de março, foi diagnosticado o primeiro caso em Portugal; a Covid tinha-nos batido à porta. A 11 de Março a OMS declarava que estávamos perante uma pandemia e veio o confinamento. Uma boa parte do país foi mandado para casa; passámos os dias a ouvir notícias, a assustar-nos com o número de infetados, de internados, de doentes em UCI e de mortes. No mês passado, contudo, começámos a olhar para o futuro com alguma esperança, porque os especialistas, embora sublinhando a necessidade de cautelas, consideravam que a nossa vida se encaminhava para uma certa normalidade. As pessoas começaram a recuperar o ânimo e, estou convencido, os mais otimistas devem ter começado a fazer planos para um Verão de desforra. Eis senão quando a comunicação social mudou de tema e a Europa de Leste passou a ser o foco; o medo da Covid foi cedendo ao medo da guerra, porque, em pouco tempo, se foi percebendo que o discurso dos políticos, principalmente os de Moscovo, se ia radicalizando e que a guerra era uma possibilidade. Perante este quadro, muitos analistas afirmavam que o discurso de Vladimir Putin era irracional e que, consequentemente, a entrada em guerra não tinha lógica; esqueceram-se de que, como afirmou Baise Pascal, “O coração tem razões, que a própria razão desconhece”. Ora o coração nem sempre se inclina para o bem, no caso em apreço para a paz. O coração também se pode inclinar para o mal, para a guerra, para o mal absoluto, o que é sempre caminho para o desastre e para as maiores injustiças. A doutrina tradicional entendia que uma guerra seria justa se fosse defensiva e se a ponderação entre o bem que com ela se pretendia e o mal que ela produzia, levasse à conclusão de que aquele bem compensava o mal da caminhada para o alcançar. Ora a História mostra que os males que a guerra gera são de tal magnitude que se pode afirmar a impossibilidade de guerras justas.
Mais depressa do que muitos esperavam, a guerra chegou, acompanhamo-la o dia inteiro pela comunicação social: jornais, rádios e televisões. De um dia para o outro a pandemia perdeu o protagonismo e foi substituída pela Guerra na Ucrânia. Se ligarmos as televisões para os canais de notícias, a Guerra é praticamente o único tema abordado, o que se compreende: pensávamos que uma guerra na Europa era impossível e ela está aí.
É verdade que não é a primeira vez que acompanhamos uma guerra pela televisão. Em agosto de 1990, fomos surpreendidos pela invasão do Kuwait pelas tropas do Iraque, governado por Saldam Hussein que considerava seu o território do emirado; o resto da história é conhecido. Tivemos uma segunda guerra pela televisão, desta vez na Europa: a dos Balcãs. A queda da Jugoslávia de Tito criou problemas de fronteira que desembocaram numa guerra que foi vivida com muita preocupação, principalmente pelos europeus. As guerras trazem à memória dos povos o passado e a Guerra dos Balcãs lembrou o atentado de Sarajevo, em 28 de junho de 1914, que vitimou o arquiduque Francisco Fernando, herdeiro do Império Austro-Húngaro, e levou à deflagração da Primeira Guerra Mundial. Para além destas guerras vistas pela televisão, os europeus têm ainda bem presente o rasto de mortes e destruição da Segunda Guerra Mundial; mesmo os que nasceram no pós guerra ouviram estórias contadas de viva voz por quem a viveu, para além dos livros e dos filmes que leu e viu sobre ela. Esse conhecimento levara, erradamente, à convicção generalizada de que a guerra no continente europeu era inimaginável, era uma impossibilidade.
Temos, contudo, de reconhecer que os reais são mais do que os possíveis, como diz um amigo meu, e que o inimaginável está a acontecer: às 3,30 da manhã, no dia 24 de fevereiro, as Forças Armadas da Federação Russa iniciaram a invasão da Ucrânia, um país independente, membro da ONU, com um governo democraticamente eleito. Depois de um discurso criativo sobre a história da Rússia e da Ucrânia, o presidente Putin ordenou a invasão para, nas palavras do seu Ministro dos Negócios Estrangeiros, Sergey Lavrov, “desmilitarizar e desnazificar a Ucrânia para que, libertados desta opressão, os ucranianos possam escolher livremente o seu futuro”. Todo o discurso tem algo de retórico, mas este é retórica pura sem qualquer correspondência com a realidade.
Mais chocante do que a referida retórica política são as notícias sobre os efeitos da invasão: a enorme vaga de refugiados a que estamos a assistir - a fuga de mulheres, crianças e idosos, num inverno rigoroso, próprio daquelas paragens, que se veem forçados a procurar abrigo nos países vizinhos. Estamos perante uma crise humanitária enorme. As imagens de destruição dos bombardeamentos, a que não escapa mas zonas residenciais das cidades, as escolas, os hospitais e mesmo edifícios administrativos de centrais nucleares, como se verificou em Zaporizhzhia. . Com o passar dos dias parece claro que as tropas invasoras decidiram arrasar tudo à sua passagem. Os europeus não esperavam assistir a nada semelhante, muito menos em solo europeu e, sem dúvida, por isso mesmo, a resposta solidária para com as vítimas desta guerra foi tão rápida e generosa.
O que nos espera, ninguém sabe, mas temos de estar preparados para o pior, porque nunca se sabe onde nos pode levar a loucura da Guerra. Mesmo que a breve trecho haja um volte face e se caminhe na direção da paz, a tragédia já acontecida é de tal modo gigantesca que precisaremos de imensos meios e de largo tempo para recuperar, mas sempre ficarão as cicatrizes.

 

Share

Print

Theme picker