Há precisamente dois anos, estávamos a viver o primeiro impacto da pandemia provocada pelo SARS-CoV-2. As notícias, nos inícios de fevereiro de 2020, falavam de uma nova doença que tinha surgido na China mas, pouco depois, apareceram os primeiros casos na Europa e, a 2 de março, foi diagnosticado o primeiro caso em Portugal; a Covid tinha-nos batido à porta. A 11 de Março a OMS declarava que estávamos perante uma pandemia e veio o confinamento. Uma boa parte do país foi mandado para casa; passámos os dias a ouvir notícias, a assustar-nos com o número de infetados, de internados, de doentes em UCI e de mortes. No mês passado, contudo, começámos a olhar para o futuro com alguma esperança, porque os especialistas, embora sublinhando a necessidade de cautelas, consideravam que a nossa vida se encaminhava para uma certa normalidade. As pessoas começaram a recuperar o ânimo e, estou convencido, os mais otimistas devem ter começado a fazer planos para um Verão de desforra. Eis senão quando a comunicação social mudou de tema e a Europa de Leste passou a ser o foco; o medo da Covid foi cedendo ao medo da guerra, porque, em pouco tempo, se foi percebendo que o discurso dos políticos, principalmente os de Moscovo, se ia radicalizando e que a guerra era uma possibilidade. Perante este quadro, muitos analistas afirmavam que o discurso de Vladimir Putin era irracional e que, consequentemente, a entrada em guerra não tinha lógica; esqueceram-se de que, como afirmou Baise Pascal, “O coração tem razões, que a própria razão desconhece”. Ora o coração nem sempre se inclina para o bem, no caso em apreço para a paz. O coração também se pode inclinar para o mal, para a guerra, para o mal absoluto, o que é sempre caminho para o desastre e para as maiores injustiças. A doutrina tradicional entendia que uma guerra seria justa se fosse defensiva e se a ponderação entre o bem que com ela se pretendia e o mal que ela produzia, levasse à conclusão de que aquele bem compensava o mal da caminhada para o alcançar. Ora a História mostra que os males que a guerra gera são de tal magnitude que se pode afirmar a impossibilidade de guerras justas.
Mais depressa do que muitos esperavam, a guerra chegou, acompanhamo-la o dia inteiro pela comunicação social: jornais, rádios e televisões. De um dia para o outro a pandemia perdeu o protagonismo e foi substituída pela Guerra na Ucrânia. Se ligarmos as televisões para os canais de notícias, a Guerra é praticamente o único tema abordado, o que se compreende: pensávamos que uma guerra na Europa era impossível e ela está aí.
É verdade que não é a primeira vez que acompanhamos uma guerra pela televisão. Em agosto de 1990, fomos surpreendidos pela invasão do Kuwait pelas tropas do Iraque, governado por Saldam Hussein que considerava seu o território do emirado; o resto da história é conhecido. Tivemos uma segunda guerra pela televisão, desta vez na Europa: a dos Balcãs. A queda da Jugoslávia de Tito criou problemas de fronteira que desembocaram numa guerra que foi vivida com muita preocupação, principalmente pelos europeus. As guerras trazem à memória dos povos o passado e a Guerra dos Balcãs lembrou o atentado de Sarajevo, em 28 de junho de 1914, que vitimou o arquiduque Francisco Fernando, herdeiro do Império Austro-Húngaro, e levou à deflagração da Primeira Guerra Mundial. Para além destas guerras vistas pela televisão, os europeus têm ainda bem presente o rasto de mortes e destruição da Segunda Guerra Mundial; mesmo os que nasceram no pós guerra ouviram estórias contadas de viva voz por quem a viveu, para além dos livros e dos filmes que leu e viu sobre ela. Esse conhecimento levara, erradamente, à convicção generalizada de que a guerra no continente europeu era inimaginável, era uma impossibilidade.
Temos, contudo, de reconhecer que os reais são mais do que os possíveis, como diz um amigo meu, e que o inimaginável está a acontecer: às 3,30 da manhã, no dia 24 de fevereiro, as Forças Armadas da Federação Russa iniciaram a invasão da Ucrânia, um país independente, membro da ONU, com um governo democraticamente eleito. Depois de um discurso criativo sobre a história da Rússia e da Ucrânia, o presidente Putin ordenou a invasão para, nas palavras do seu Ministro dos Negócios Estrangeiros, Sergey Lavrov, “desmilitarizar e desnazificar a Ucrânia para que, libertados desta opressão, os ucranianos possam escolher livremente o seu futuro”. Todo o discurso tem algo de retórico, mas este é retórica pura sem qualquer correspondência com a realidade.
Mais chocante do que a referida retórica política são as notícias sobre os efeitos da invasão: a enorme vaga de refugiados a que estamos a assistir - a fuga de mulheres, crianças e idosos, num inverno rigoroso, próprio daquelas paragens, que se veem forçados a procurar abrigo nos países vizinhos. Estamos perante uma crise humanitária enorme. As imagens de destruição dos bombardeamentos, a que não escapa mas zonas residenciais das cidades, as escolas, os hospitais e mesmo edifícios administrativos de centrais nucleares, como se verificou em Zaporizhzhia. . Com o passar dos dias parece claro que as tropas invasoras decidiram arrasar tudo à sua passagem. Os europeus não esperavam assistir a nada semelhante, muito menos em solo europeu e, sem dúvida, por isso mesmo, a resposta solidária para com as vítimas desta guerra foi tão rápida e generosa.
O que nos espera, ninguém sabe, mas temos de estar preparados para o pior, porque nunca se sabe onde nos pode levar a loucura da Guerra. Mesmo que a breve trecho haja um volte face e se caminhe na direção da paz, a tragédia já acontecida é de tal modo gigantesca que precisaremos de imensos meios e de largo tempo para recuperar, mas sempre ficarão as cicatrizes.