As palavras que abarquem o horizonte do mundo
Joel Neto

As palavras que abarquem o horizonte do mundo

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Se tens um jardim e uma biblioteca

«O programa eleitoral do PSD, tanto quanto o programa de governo da coligação, prometeu pôr (e cito) “as pessoas primeiro”. Que espécie de surpresa pode haver no plano para o Açores 2030? Ou por outra: que governo, afinal, pensavam o Chega, a Iniciativa Liberal e o deputado independente estar a apoiar?»

 

1. OS AÇORES. Surpreende-me o gesto de Ricardo Tavares, director regional de Cultura cessante, ao recusar a exoneração. Porque não é em primeiro lugar um gesto nem para com Susete Amaro, a secretária regional da tutela, nem para com José Manuel Bolieiro, o presidente do Governo. É em primeiro lugar um gesto para com Paulo Estêvão e o PPM, que o nomearam.
Nós já sabíamos que, se daqui a dois anos e meio conseguisse reeleger-se sem o apoio do Chega, Bolieiro teria a maior urgência em dispensar-se dele, tanto por razões sanitárias como por razões práticas. E o mesmo com a Iniciativa Liberal, embora mais por razões práticas (Nuno Barata é tão errático como José Pacheco) do que sanitárias. O que nós não sabíamos era que o PPM também estava em risco. Até porque, nas legislativas nacionais, PSD, CDS e PPM/Açores concorreram juntos, manifestando unidade.
Infelizmente para o Governo, mas também para o PPM, os problemas não estãoapenasno domínio dos acordos parlamentares: estão no seio da própria coligação. Chego a ter pena de José Manuel Bolieiro. Seria sempre difícil gerir um governo assim, e entretantotoda a gente se tem esforçado por lhe dificultar a missão.

2. O PAÍS. Há duas maneiras de olhar para a condenação de Ricardo Salgado a seis anos de cadeia. Foi condenado mais um banqueiro, era o maior banqueiro de todos e, apesar do aparelho da defesa, a prisão é efectiva. Mas foram dados como provados apenas três crimes de abuso de confiança.
Caíram 18 crimes, por prescrição ou falta de provas. E, sobretudo, caíram os pronunciamentos por corrupção activa com Henrique Granadeiro, Zeinal Bava e, principalmente, José Sócrates no papel de corrompidos.
Certo: Salgado até se pode livrar da cadeia – devido ao Alzheimer ou a outra razão qualquer –, que já não fica a rir. Acontece que as razões para temer que José Sócratesacabe ilibado vão-se acumulando. E isso não é menos assustador.
O que será da nossa confiança na justiça se os restantes crimes de que Sócrates é acusado também caírem, por falta de provas ou até por inocência? E de que modo poderá o país, nesse caso, reparar os danos causados a um cidadão por tantos anos de humilhação?

3. OS AÇORES. Grassa a insatisfação com as prioridades estabelecidas pelo Governo Regional para a aplicação das verbas doquadro Açores 2030, e seria sempre inevitável que assim fosse. Mas é extraordinário que tantas das críticas venham dos partidos da direita, e nomeadamente daqueles que sustêm o executivo no Parlamento.
O programa eleitoral do PSD, tanto quanto o programa de governo da coligação, prometeu pôr «as pessoas primeiro». E, entretanto, há semanas que sabemos que José Manuel Bolieiro tencionava entregar aos esforços de convergência social 561 milhões dos 1140 milhões de euros que vêm do FEDER e do Fundo Social Europeu. Que espécie de surpresa pode haver no plano em debate? Ou por outra: que governo, afinal, pensavam o Chega, a Iniciativa Liberal e o deputado independente estar a apoiar?
O plano não merece senão aplausos. Com os nossos índices de desenvolvimento humano, nada é mais urgente do que a convergência social, as políticas públicas destinadas a promover a convergência social e, portanto, o sector público. As empresas até podem estagnar (espero que não), que os Açores não «ficarão mais pobres», como diz Carlos Furtado. Na verdade, nunca haverá dinamização económica se não tirarmos as pessoas da pobreza – porque continuaremos sem um mercado interno e porque em nenhuma circunstância disporemos da força de trabalho qualificada e motivada que a economia exige.
Os Açores não precisam de melhorar: precisam de ser reconstruídos. O único caminho é este. Tudo o mais será começar a casa pelo telhado.

4. OS AÇORES E O MUNDO. A Antígona acaba de publicar pela primeira vez em Portugal o diário de Witold Gombrowicz, Diário, vol. I (1953-1958), e todos nós, açorianos devíamos lê-lo. O olhar de Gombrowicz sobre a Polónia do pós-guerra, observada a partir do exílio do autor na Argentina, merece a nossa reflexão.
Diz ele, a propósito das glórias literárias autoproclamadas pelos escritores e críticos polacos:«Com a ingenuidade de crianças, brandis as glórias polacas diante dos narizes de um público estrangeiro e entediado, unicamente com a finalidade de fortalecer o vosso amor-próprio enfraquecido e de atribuir importância a vós próprios. Sois como pobres que se gabam de a avó ter uma quinta e de costumar ir a Paris.»Isto é: urge resistir ao provincianismo e urge não perder de vista «as palavras que abarquem o horizonte do mundo, e não apenas o nosso bairro.»
Lembrei-me de nós, escritores açorianos. De nós, homens e mulheres de cultura açorianos. De nós, açorianos em geral: sempre necessitados, a esta distância das grandes metrópoles, de resistir à tentação de nos refastelarmos, satisfeitos com sucessoscuja verdadeira dimensão nos convencemosde não ter ampliado.

5. O MUNDO. Continuam a surgir informações sobre o modus operandi do Crédit Suisse, banco que agora vê expostasprovas de que escondeu fortunas provenientes deesquemas de lavagem de dinheiro, corrupção, tráfico de droga, até tortura. Estão em causa quase cem mil milhões de euros depositados pelos protagonistas do escândalo Petrobrás, Suni Abacha, o antigo ditador da Nigéria (214 milhões de dólares), ouFerdinando Marcos, o corrupto ex-presidente das Filipinas (10 mil milhões de dólares), entre tantos outros bons rapazes.
Isto, note-se, da parte do banco que já tinha sido o último a devolver aos herdeiros dos judeus assassinados no Holocausto o dinheiro que lhes pertencia.E eu muito gostaria de isentar os outros bancos suíços, a Suíça e o próprio povo suíço desta aberração. Mas, em 1934, a federação suíça integrou na Lei Federalo infame Artigo 47.o, que impede a quebra de sigilo bancário em qualquer circunstância (em qualquer circunstância, repito) e que impõe duras penas de prisão a quem o faça.
Foi isso a tornar a Suíça o paraíso bancário que é hoje. Foi isso a torná-la um dos países mais ricos do mundo. E, entretanto, ninguém o impediu: nem os governos, nem a assembleia federal, nem o próprio eleitorado. Só o Crédit Suisse gere hoje mais de 1,5 biliões de euros. Não são 1,5 mil milhões mal traduzidos: são 1,5 milhões de milhões – biliões mesmo. Devia cobrir-se de vergonha, a Suíça: a sua tão admirada neutralidade, que aliás assentou na ideia de cofre seguro para os judeus perseguidos por Hitler, não passou mesmo de um negócio, ainda por cima sujo.


*Escritor e membro do programa da RTP Açores Novo Normal (quartas e quintas-feiras à noite)

 

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