Ucrânia II

Ucrânia II

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fuga

quando se foge da barbárie
das armas que nos apontam
ao abandonar a casa onde moramos

- o que poderemos levar?

- uma série de retratos de quando éramos novos
dos pais e dos avós
e da nespereira do quintal com um gato enroscado nos seus ramos
meia dúzia de moedas e notas de papel
e dentro de uma mala ou de um saco de plástico
duas camisolas e um cobertor para nos cobrir no inverno
para além de um pão caseiro duas maçãs e um pacote de leite

todo o universo dos nossos bens
cabem nos nossos bolsos
numa mala e num saco

- não levamos nem temos mais nada
sem esquecer o passaporte e outros documentos
que nos possam identificar
para poder passar para outro lado
onde não queríamos ficar

na fuga ficaram para trás
a cama e os lençóis
e as outras fotos amarelecidas nas molduras de madeira
de gente já desaparecida e com quem nos identificávamos
e das imagens dos ícones sagrados
do padroeiro S. Miguel e de outros santos
rodeados de velas e de flores

que irão desaparecer debaixo do fogo dos canhões
apontados à chaminé da casa
derrubada até ao alicerce

e as terras deixadas por onde o vento ondulava
sob as vastas searas de girassóis e de trigo
hoje martirizadas carregadas de cicatrizes
afastando os anciãos e a miudagem da beleza da paisagem

- nem o ladrar dos cães se ouve
- nem o vozear dos pássaros no ar
nem o doce miar dos gatos nem o alegre grito dos galos

- ai Deus onde ficarão os animais?

não poupa a guerra as crianças
e os velhos inválidos
e as mulheres carregando os filhos pelas estradas enlameadas
até perderem as forças e a fé
na cruz e no terço que as suas mãos trémulas seguram

os olhos são postos no céu
que deixou de ter cor
fechando-se ao ruído e ao clarão intenso dos mísseis
a cair sobre a terra coberta de flocos de neve

que as mãos impiedosas disparam
às ordens de outras criaturas que os governam
e obrigam a matar e a morrer por causas que não deles
e nem acreditam

porque são homens que carregam o ódio
- o ódio de outros homens
e lhes é colocado na ponta das baionetas
deixando-os cegos para não ver o que é destruído

e o que a morte
- leva a morrer sobre os escombros de uma cidade
semeada de dor apodrecida e sem vida

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