Por S. Jorge
José Soares

Por S. Jorge

Previous Article Previous Article TEMOS DE AVANÇAR (“é proibido andar parado”...)
Next Article Edição de 29 de Março de 2022 Edição de 29 de Março de 2022

Peixe do meu quintal

Foi em 1965, que a convite de familiares que se encontravam a trabalhar no então Gabinete da Reconstrução nas Velas, visitei a Ilha de São Jorge durante as férias escolares de verão.
Ainda recordo o impacto que me causou os inúmeros vestígios de destruição de casas, igrejas e muitos edifícios, prejudicados pela crise sísmica do ano anterior (1964). Apesar de tudo, os trabalhos corriam a bom ritmo e a Ilha recomponha-se aos poucos.
Durante esses cerca de três meses da minha estadia nas Velas, pude arranjar amigos e amigas com os quais partilhamos pedaços da nossa juventude.
Esses amigos não se cansaram de me acompanhar por toda a Ilha, mostrando-me os costumes, as belezas e as famosas aventuras na ida às Fajãs. Chegamos mesmo a acampar naquela que mais me impressionou, pelo esforço despendido para lá chegar, a Fajã do Santo Cristo.
Aos fins-de-semana percorríamos diversos lugares e freguesias onde havia serões, música ao vivo que acompanhava os bailes-de-roda.
 Os sons dos violinos e das violas, com melodias encantadoras, incitavam os presentes à dança.
Nós, os jovens, logo procurávamos um par, só que no meu caso ficava-me a ver, por não saber acompanhar aquele género de dança. Mas logo aparecia uma moça local, a convidar-me para a dança e a ensinar-me os passos da mesma.
Lembro-me do bom Padre Farias, das Manadas, homem que acordávamos às duas da manhã, invadindo a sua cozinha e comendo o que houvesse no frigorífico de petróleo, luxo divino naquela altura.
 Como íamos muitas vezes à pesca submarina e o peixe abundava, distribuíamos por várias pessoas e levávamos ao Padre Farias uns bons quilos de “Vejas”, peixe que ele muito apreciava.
E foi na casa do Padre Farias que havia de surgir a ideia de fazer um jornal. Vi que ele tinha um mimeógrafo, papel stencil e o resto foi canja.
Dispensamos algumas noitadas, em segredo, a escrever vários protestos contra inúmeras situações que ocorriam no dia-a-dia.
Duas páginas de notícias, que depois eram distribuídas estrategicamente e em segredo, sobretudo nas Velas.
As críticas rezadas em tais panfletos depressa despertaram o interesse do polícia Roma, que depois de várias investigações, mostrou-se impotente na descoberta dos autores panfletários que ousavam criticar instituições e sistemas.
Quando terminaram as férias, embarquei para Lisboa. Tempos depois, recebia uma carta do Fernando Silvano, filho do dr. Silvano, que me informava que o polícia Roma desconfiava da minha pessoa como autor dos “panfletos comunistas” como lhes chamava o polícia.
Ninguém melhor que um ilhéu, para saber o custo de viver em ilhas. Viver em cima de vulcões que de vez em quando ressonam, mexem-se ou levantam-se.
“Eu não saio daqui. É a minha casa e vivo nesta Fajã há cinquenta anos. Só se me forçarem.”
Foi o que ouvimos da boca de um residente jorgense no noticiário televisivo de há três dias, em plena crise sismovulcânica.
Este apego ao lugar, à terra, à Ilha, formatou-nos o espírito de completa entrega do corpo, sem pestanejar.
A Ilha é a única que tem o direito de me levar, porque ela é a minha mãe. 

Share

Print

Theme picker