Diário dos Açores

Não façamos deles estátuas

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Numa altura em que vão ganhando corpo as comemorações do centenário do nascimento de Pedro da Silveira, entre exposições, colóquios e descerramento de placas, leio, de ponta a ponta, “Minha Pedra da Vida – uma Antologia Breve e para Todos”, volume publicado pela Câmara Municipal das Lajes das Flores, com edição do determinante Vasco Rosa. Foi lançada no mês passado, a 2 de Abril, no início oficial das comemorações, que contou com intervenções várias e um momento desenhado pela Filarmónica União Operária de Nossa Senhora dos Remédios. Instante musical significativo – porque um autor literário merece ser celebrado por outras artes que não a sua, até porque assim pode chegar a mais gente.
O livro traz, além de poemas, textos sobre Raul Brandão, Roberto e Carlos de Mesquita, António Nobre, Vitorino Nemésio, Alfred Lewis, e uma prosa evocativa da inquieta vida literária de Ponta Delgada nos anos 40 do século passado, em torno do jornal “A Ilha”. Na nota de badana, Luís Maciel, presidente da Câmara Municipal das Lajes das Flores, refere-se à justiça de celebrar Pedro da Silveira, uma “figura maior do concelho”, sublinhando, em apontamento oportuno, que chegou a altura de festejar aí, de um modo inteiro e empenhado, um autor que não teve uma relação pacífica com as Flores. Como aconteceu e acontece com tantos autores com o sítio onde nasceram e cresceram. Uma relação problemática com a sua terra é uma condição frequente dos escritores que se prezam. O amor tem sempre o seu reverso perante os engulhos criados pelos auto-empossados donos do pedaço. Além disso, admita-se, para além das pulsões hagiográficas, os escritores têm, em geral, um feitiozinho tramado – são em geral seres imperfeitos e contingentes, cheios de neblinas interiores. Era o caso.
Tenho pensado no assunto: é importante que as comemorações, entre importantes placas e medalhas, não resvalem para tudo aquilo que o autor deplorava: a empáfia, a artificiosa solenidade, o ego  sobre a obra. Numa palavra bem portuguesa: a cagança. Pedro da Silveira só será condignamente celebrado se houver, mesmo que por instantes, algum do espírito anarquista que sempre manteve, apesar de ter frequentado meios literários e ter trabalhado, com imensíssimo rigor, na Biblioteca Nacional. Se há algo que marca a sua literatura – e ao ler o livro relembrei isso – é a ausência de literatice. Jacques Brel disse uma vez: “Não façam de mim estátua”. Pedro da Silveira reconhecer-se-ia neste desabafo.
Outra figura pouco dada a petulâncias, mas num registo mais sóbrio do que o autor de “A Ilha e o Mundo”, foi Norberto Ávila, que morreu há dois dias. Terceirense com uma ligação intensa a São Jorge, é alguém que, pela sua viva produção na área do teatro – género pouco praticado em Portugal -, merecia outro reconhecimento, sobretudo na sua casa insular (houve uma excepção importante – em 2016, nos Colóquios da Lusofonia).
A tradução foi outro dos seus gestos decisivos. Não é qualquer um que traduz autores tão distintos quanto Shakespeare, Tennessee Williams e Fassbinder. A sua prosa também é um regalo para quem aprecia uma ficção ritmada e dada ao pícaro – pude comprová-lo ao ler o conto publicado na terceira edição da Grotta: “”O Lastimoso Caso de Valentino e Passareta”. Não façamos também de Norberto Ávila uma estátua – ele que, mesmo nunca abrandando o seu talento e o seu esforço, foi tão pouco valorizado em vida.

Nuno Costa Santos *

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