Todos os açorianos têm uma história de marítima aflição. Ok. Tudo bem. Muitos açorianos têm pelo menos uma história de marítima aflição. De um dia em que o mar virou e uma pessoa se obrigou a aguentar, com a dignidade máxima, numa embarcação, entre vagas e enjoos e pavores. Em que uma pessoa, sabendo, pela estatística, que seria improvável o naufrágio, não deixou de pensar nisso, tal a zanga do mar e o sentimento de insignificância no oceano. Acontece e aconteceu a quem, por rotina, pela profissão, por ligações familiares e afectivas, tem de atravessar, com frequência, o canal ou a quem seguiu em viagem de passeio na costa de uma das ilhas, sem imaginar que o passeio podia transformar-se numa notícia da Lusa. Falava-se disso no outro dia numa “mesa de amigos”, com gente de São Miguel, de Santa Maria, do Pico e das Flores, no Central Pub, em Vila de Porto, depois de uma sessão em que se celebrou Pedro da Silveira.
Há umas semanas, em casa do Joel Neto e da Marta Cruz, na Terra Chã, Terceira. Estávamos à conversa na cozinha, trilhando assuntos diversos, provando uns croquetes de alcatra. Súbito, a porta e os móveis começaram a tremer. O Joel assinalou calmo: - Olha, um sismo. Quando digo calmo, digo quieto, sem levantar a voz, mas também sem desvalorizar a ocorrência. Nós, na mesa, olhámos, sentimos, reconhecemos, durante uns segundos, poucos, a evidência do tremor. A ocorrência passou e nós continuámos a conversa. Não digo como se nada fosse. Digo como se não fosse decisivo cada um ir para o seu canto mais seguro.
Quando cheguei ao Corpo Santo, encontrei na net a notícia: “O Centro de Informação e Vigilância Sismovulcânica dos Açores informa que às 21:56 do dia 14 de maio foi registado um evento com magnitude 2,4 (Richter) e epicentro a cerca de 3 km a NW de Terra Chã”. O sismo foi, segundo o relato, sentido nas freguesias de Terra Chã, Conceição, Santa Luzia, São Pedro e São Bartolomeu. Nas redes sociais, distribuíam-se variações do post-tipo: “Alguém sentiu?” Nas caixas de comentários, as respostas e as pistas. Aqui sim, aqui não, aqui mais ou menos. A sensação de haver uma terapia de grupo era notória. Estes ilhéus, sujeitos à força de algo que os transcende, como que se amparavam através da partilha e, algumas vezes, através do humor. Antes saíam de casa e falavam uns com os outros, muitas vezes de pijama. Agora tudo acontece nas redes sociais - e, tendo em contas as horas da noite, também de pijama. Uns dias depois, ao assistir ao telejornal da RTP Açores, fiquei a saber que, noutra ilha, São Jorge, num espaço de uma semana, foram registados mais de mil e seiscentos sismos. Sim, mais de mil e seiscentos, no contexto de uma situação de agitação que levou a que fosse decretado o nível máximo de alerta vulcânico.
Aos que dizem que a açorianidade não existe, que é uma ficção estimulada por escribas indolentes e que é a mesma coisa viver nas ilhas açorianas e viver no interior português posso dar o exemplo dessas experiências que distinguem os insulares deste arquipélago dos continentais. Há quem, não sendo destas ilhas ou não vivendo aqui, traga experiências com algumas rimas. Mas cá é mais frequente. Tem-se falado muito de rankings a propósito dos Açores e dos seus indicadores de desenvolvimento. Então diga-se: no ranking dos sustos com a Natureza estamos bem acima da média.
Nuno Costa Santos *