Diário dos Açores

Tão Português que Até Dói

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Assistiram à entrevista feita ao escritor José Rentes de Carvalho, hoje com 92 anos, gravada na sua aldeia em Trás-os-Montes, e transmitida pela RTP? Se não viram, aconselho. Está aqui: https://www.rtp.pt/play/p10074/e624465/primeira-pessoa
É uma sugestão para os que gostam de pessoas autênticas, que não estão aqui para ludibriar o pagode, que percebem a intenção do gesto de alguém que critica o seu país, denuncia as fendas do seu lugar e tem razões para tal. De uma personalidade que não anda aqui para pôr debaixo do tapete os problemas históricos da terra onde cresceu, Estevais, Douro Interior, que ainda hoje subsistem, como a pobreza, a violência, a rudeza, o sentimento de abandono transformado em mágoa. Os que sabem que a arte, no caso a arte literária, tem uma vocação para denunciar a miséria dos lugares, o esquecimento estrutural a que estão sujeitos por gente que, estando relativamente perto na geografia, parece estar muito longe. Para os que percebem que amar não é só dizer que é tudo muito bonito e idílico. Para quem valoriza todos os olhares, também os dos que estiveram fora, sem deixar de estar dentro, decisivos para ter uma visão mais crua das realidades, das dores e sombras das comunidades.
Há algo notável que distancia José Rentes de Carvalho, que só começou a ter alguma visibilidade em Portugal há uma década e meia, de escritores maiores como Eça de Queirós que, apesar do seu brilhantismo literário, tiveram a fraqueza de se deslumbrar com “o estrangeiro” - no caso com Paris, com muitas virtudes, por certo, mas com muitos defeitos, com certeza. É o autor de romances como “Ernestina” e “La Coca” - sobre o contrabando vário da sua zona, que faz fronteira com Espanha. Mas também de “Com os Holandeses”, obra muito crítica da maneira de ser e dos costumes na Holanda, onde viveu durante anos e anos, enquanto professor. E, já agora, se afirmou.
O programa – e não estarei a perturbar o visionamento a ninguém ao dizê-lo – acaba com o escritor, acompanhado da entrevistadora, Fátima Campos Ferreira, perante a solidão da sua paisagem. Para trás ficam rijos lamentos perante todos os que deixaram o interior ao abandono, por mais que surja amiúde nos discursos, sobretudo após catástrofes como a de Pedrógão Grande.
Se Rentes de Carvalho se sente menos português depois de tanta crítica? Não. Afirma de modo comovente: “Sou um português, portuguesíssimo até à medula, até à chatice. Sou tão português que até dói”. Apesar de ter crescido entre gente que só se alimentou de “pão, cebola, couves e água”, e de pisar uma terra na qual no cemitério não há direito a nomes mas apenas ao anonimato da morte, mantém o sentimento de pertença.
Não estamos perante alguém imaculado. Há uma maldadezinha sarcástica neste escritor. Um histórico de rezinguiçes – uma vez assisti a uma homenagem que lhe fizeram em Matosinhos, na qual satirizou sem dó as mordomias florais que as autoridades, com a melhor das intenções, lhe preparam. Não tenhamos dúvidas: este é um homem magoado, agreste até mais não. Mas também capaz de nos comover na forma preocupada e compassiva como fala dos seus – os de ontem, os de hoje, os de amanhã.
Acima não recomendei a entrevista a quem, nos Açores, nos poderes, formais e informais, à verdade dos factos, persiste, a coberto de um muito puro (ah, tão puro) “amor à terra”, em anular as suas possibilidades. José Rentes de Carvalho tem muito para vos ensinar.

Nuno Costa Santos *

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