Diário dos Açores

O regresso da guerra

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A invasão russa da Ucrânia constitui o maior conflito bélico europeu desde o final da II Guerra Mundial. As suas consequências globais estão à vista de todos. Nos Açores, assim como em quase todo o mundo, assiste-se ao aumento generalizado do preço dos combustíveis, dos produtos alimentares e ao incremento das taxas de juro.
Devido às dificuldades relacionadas com a exportação dos cereais oriundos da Federação Russa e da Ucrânia - dois dos maiores produtores mundiais - começam a chegar sucessivos avisos a respeito da possibilidade real de uma parte substancial da população dos Estados mais pobres enfrentarem, em todo o mundo, uma grave crise alimentar.
Todo este contexto originará uma perigosa instabilidade política em muitos Estados e promoverá, com grande probabilidade, movimentos migratórios de grande dimensão em direção aos Estados Unidos e à União Europeia. Estão reunidos os requisitos necessáriospara que tudo isto origine uma grave crise mundial.
Olho sempre para a História para tentar compreender e antecipar cenários, mas a verdade é que se é possível observaralgumas continuidades,também é possível identificar diferenças substanciais em relação a conflitos anteriores, que não permitem estabelecer analogias úteis.
As continuidades são evidentes. A Federação Russa é uma típica potência revisionista, que pretende reverter alguma das consequências geopolíticas mais penalizadoras da derrota da União Soviética (sucedâneo histórico do Império Russo) na “Guerra Fria”. A perda do controlo da Ucrânia e dos seus imensos recursos naturais constitui, porventura, oretrocesso territorial mais grave da Rússia desde “Pedro, o Grande”.
Assim, Putin utilizou a estafada questão das minorias nacionais, supostamenteoprimidas no interior de outros Estados, para justificar a intervenção militar e asubsequente anexação territorial. A argumentação é em tudo idêntica à utilizada no âmbito da desagregação do Império Austro-Húngaro ou até por Hitler em relação à anexação dos Sudetas (região de maioria alemã, que integrava a Checoslováquia antes da II Guerra Mundial). Foi também o argumento que justificou a intervenção Ocidental em defesa da independência do Kosovo.A Crimeia e oDonbass constituem regiões habitadas, maioritariamente, por populaçõesde língua russa. A Crimeia conta, também, com uma maioria etnicamente russa. Nada de novo por aqui.
Para além das graves consequências que resultam do desrespeito pelas fronteiras reconhecidas internacionalmente, a invasão russa da Ucrânia constitui um precedente gravejunto de todos os vizinhos da Federação Russa que integram substanciaisminorias russas no interior das suas fronteiras. É caso, por exemplo, dos países bálticos ou do Cazaquistão.
O dilema é idêntico ao que as potências Ocidentais tiveram de enfrentar, nos anos trinta do século passado, em relação a Hitler. O ditador alemão anexou,de forma sucessiva, a Áustria, os Sudetas,a Boémia-Morávia e o território de Memel.A única forma de parar as anexações territoriais de Hitler – todas justificadas pela proteção das minorais alemãs – foi a guerra, após a invasão da Polónia em setembro de 1939.
Putin ficará saciado após a anexação do Donbass, depois de já, em 2014, ter anexado a Crimeia? As potências Ocidentais temem que a voracidade de Putin não tenha limites, tal como já sucedeu no passado com outros “conquistadores”, como Napoleão ou Hitler. Só a derrota militar os parou.
Mas terminam aqui as semelhanças. Nesta crise internacional, ao contrário do que sucedeu nos dois grandes conflitos mundiais- e com exceção do que agora se chama o“Ocidente alargado” -, o resto do mundo não está a acompanhar as decisões ocidentais em relação ao envolvimento militar (através da entrega de armamento) e às sanções internacionais à Rússia. É o caso da Índia, da China, do Brasil e de muitos outros países não ocidentais. O resto do mundo parece estar reticente em envolver-seem guerras provocadas, em primeira instância, pelas potências europeias, em consequênciadas suas eternas questões nacionais e étnicas.
A outra questão essencial – e diferente - é a nuclear. A Rússia, tal como qualquer outra grande potência nuclear, não pode ser invadida ou completamente derrotada do ponto de vista militar, tal como sucedeu com a Alemanha ou o Japão na II Guerra Mundial. Em circunstâncias desesperadas, a Federação Russa ativaria, certamente,o seu potencial nuclear para evitar uma derrota militar de grande dimensão.
Ou seja, a Rússia não podee não será, completamente esmagada, como o foram outras potências no passado. Esta é uma circunstância que representa uma enorme diferença em relação ao passado. É arriscado perspetivar o que pode suceder a partir daqui. O futuro é, afinal, incerto. Sempre foi.

Paulo Estêvão *

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