Diário dos Açores

O fado da saudade

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Quando jovem não apreciei o fado, talvez como a maioria dos indivíduos no mesmo grupo etático. Cheguei a insurgir-me contra a ideia deconsiderá-lo símbolo nacional. Todavia, aprendi a compreendê-lo na América.
Hoje deleito-me ouvindo a Amália Rodrigues(1920-1999), viva sempre na memória coletiva da música de Portugal. Transcende agora a morte, ancorada nos arquétipos inseparáveis da nossa enculturação. Admiro ainda a Mariza Nunes, e outras estrelas refulgentes da constelação das fadistas (Gisela João, Ana Moura, Dulce Pontes, Cuca Roseta, etc.) que conferem ao fado a dignidade de estar associado no palco internacional ao património imaterial da humanida de como outras contribuições, quiçá menos conhecidas, que os portugueses produziram.
Homenageada com o túmulo onde repousa para a eternidade no Panteão Nacional, a Amália possui seu nome cinzelado no imaginário artístico da grei lusa como a legendária Maria Severa Onofriana. Da última, perdura agora a notícia longínqua e nebulosa, quase mitológica, da aptidão invulgar como cantatriz castiça. No período histórico da sua vida curta (faleceu aos 26 anos em 1846) a invenção de Thomas Alva Edison (1847-1931) era ainda fenómeno misterioso, o qual Benjamin Franklin (1706-1790) tentara recolher um século antes com um papagaio pairando no céu borrascoso.
Por isso da Severa se evoca o nome e a arte sem a podermos escutar. Subsequentemente, as tecnologias da reprodução sonora enriquecem a cultura dos povos, retendo no presente e assegurando para o futuro as vozes e sons perdidos no percurso evolucionário da ciência.
A Severa foi figura proeminente da interpretação do fado num período conturbado na história nacional. Debatiam-se no choque de conceções divergentes as implicações da recente perda do Brasil e a humilhação e o decoro perante o mundo em termos do servilismo do país empobrecido e subjugado na situação de facto de protetora do da Inglaterra. Os constitucionalistas pretendiam evitara substituição da influência inglesa numa perspetiva cultural pela adulação preferencial voltada para a França.
A ascensão do domínio económico e político dos agentes anglo-saxónicos na vida portuguesa era tão convincente em 1807(ano da invasão chefiada por Jean-Andoche Junot) ou mais do que na realidade subsequente à submissão de Napoleão em Waterloo. Por isso no pensamento dos patriotas que já haviam colocado em risco a coroa de Dom João VI, refugiado no Brasil, aos portugueses competia proteger os seus valores e até o conceito de soberania ou de plenitude da identidade imperial. Havia nesta colisão política e cultural uma atitude de revolta que pouco mais de um século depois Zeca Afonso (1929-1987)cantaria na Grândola Vila Morena em face das restrições da liberdade individual impostas na ditadura do Estado Novo.
A rejeição representada na letra etnocêntrica do fado da Severa de novo renovar-se-ia na canção popular em que a Amália fez eco, um século depois, da valorização da identidade cultural de Portugal: “[…]Lisboa, não sejas francesa Tu és portuguesa Tu és só p’ra nós […]”.
Na década 1950, o rock era rei entre a rapaziada nova. Mas um outro genre musical conquistava a Europa com baladas improvisadas e antecedentes percussionistas oriundos da África. Expressava-se através de instrumentos de sopro, exibindo trombones de vara modulando queixumes cantados no choro críptico da escravatura anterior à Guerra Civil americana. Catapultado das janelas abertas da primavera alfacinha, o fado fora quase substituído pelo jazz importado na articulação musical do trompete de Louis Armstrong.
Naquele tempo, desde os nomes dos bebés aos raros livros que os pais liam e às melodias que as emissoras transmitiam em ondas média e curta, as linhas harmoniosas das trovas, tudo o que se lia e escutava passava pelo filtro fino da Censura. Não se admitia que o povo português soubesse pensar sem cicerone. Talvez os acordes de Armstrong escapavam à indignação latente do regime fascista contra o apoio dos Estados Unidos à descolonização das “províncias ultramarinas” por serem instrumentais, sem palavras inteligíveis.
O fado tem uma qualidade nostálgica que faz a gente viajar através de memórias que nos mantêm inseparáveis da diferença grupal construída no processo de socialização. Ativa processos neurológicos nos circuitos límbicos com imagens no olhoda mente, recordações feitas de afetos, dir-se-iam quase alucinatórias, como a face da minha mãe, que revejo cantarolando na diáspora para se dececionar a si própria: “O soldado na mortalha […]” ou “Olha A menina João Solidão […]”. Saudade.
Eram canções antigas, confissões versejadas no código de emoções suprimidas, lágrimas transmutadas em notas musicais expressando com arte dolorida a depressão de gerações em cuja experiência o fado mascarava sobretudo a condição existencial da mulher e a subserviência da sociedade constrangida.
Nas guitarras plangentes, o fado não é o “destino marcado”dos versos de Ricardo Ribeiro, nem a punição inescapável implícita nas tragédias gregas, mas uma visão trágica da condição humana musicada numa dimensão artística semelhante ao processo operístico em que a emoção emerge numa escala dolorosa. Como no Fado do Emigrante de Dona Rosa, ora num gemido lacrimoso ou num grito de protesto: “Saudade… saudade da pequena aldeia…”.

Manuel Leal *

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