Diário dos Açores

O Monte da Tentação

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Abomino todo o tipo de radicalismo, de sectarismo e de dogmatismo. Não divido o mundo a preto e branco. Entre os bons e os maus. Entre os nossos e os outros. Este género de atitudes, de práticas e de condicionamentos impede a análise racional dos factos e a consequente tomada equilibrada de decisões.
Assiste-se, nos nossos dias, ao crescimento da intolerância e do fundamentalismo de opinião. As redes sociais estão enxameadas de exaltados que disparam implacavelmente ao menor estímulo pavloviano. Basta-lhes um título, um nome ou um simples comentário indutor. Colocados em alerta pela rede de interesses, pelas estruturas partidárias, pelos grémios de opinião, pelas associações de ódios ou pelos anarquistas e populistas que se banham no caos, uma parte significativa dos indivíduos segue, com verdadeiro espírito de rebanho, as correntes de opinião mais ruidosas ou numerosas.
Depois de se colocarem em movimento, nada os para ou inverte a direção dos comentários. De nada vale demonstrar equívocos, manipulações ou erros de interpretação. “O Triunfo dos Porcos”, de George Orwell, conta a História dos animais de uma quinta que se revoltam contra o homem que os tiranizava e o processo de criação de uma manada acéfala. Os animais são liderados por dois porcos, o “Bola de Neve” e o “Napoleão”, que os conduzem à vitória revolucionária. Os animais vitoriosos criam, então, um sistema doutrinário, o Animalismo, cujos princípios se sintetizam em sete mandamentos.
Os porcos e os cães aprendem, sem dificuldade, os sete mandamentos, mas os carneiros e outros animais evidenciam mais dificuldades. Para os animais com mais dificuldades de aprendizagem, os ideólogos animalistas elaboraram a seguinte síntese doutrinária: quatro pernas bom, duas pernas mau!
As reuniões plenárias dos animais da quinta, no início inteiramente livres, passam a deliberar apenas sobre as ideias e os projetos dos líderes. Qualquer discordância é imediatamente abortada pelo rebanho de carneiros que abafa qualquer discordância com balidos repetidos até à exaustão: quatro pernas bom, duas pernas mau! Quatro pernas bom, duas pernas mau! Ou seja, ninguém pensa, ninguém raciocina e ninguém problematiza.
Para além do efeito de manadagera-se, nas redes sociais, outro efeito curioso. Chamo-lhe o efeito supervilão. Escondido atrás de um qualquer teclado, usando uma máscara de super-herói ou de supervilão do cinema e das histórias das bandas desenhadas, centenas de lingrinhas insultam, caluniam e ofendem instituições e pessoas, sem outro propósito que a rápida satisfação de instintos tão básicos como a inveja e o ódio.
Muitos dos que se dedicam ao insulto nas redes sociais são incapazes, se confrontados pelos ofendidos, de reproduzirem esses insultos de forma presencial, se, entretanto, não estiverem acompanhados pelo resto da manada.
Nada disto é novo. As multidões, protegidas pelo número e pela força, podem tornar-se irracionais e desapiedadas. É isso que ajuda a explicar as enormes assistências populares que tinham os autos-de-fé da Santa Inquisição, as lapidações bíblicas, as Jacqueries medievais, os pogroms russos, os linchamentos de todas as épocas e os espancamentos fascistas e nazis. É também isso que explica muito do violento comportamento grupal nas redes sociais. Quando alguém está no chão, muitos não resistem ao requintado prazer de dar mais um pontapé e deixar mais um insulto ao desgraçado que caiu em desgraça.
Ódio, cobardia e malvadez. As redes sociais são, muitas vezes, o instrumento privilegiado de propagação desse tipo de mensagens. No fundo, como em qualquer atividade e interação humana, cada um de nós é livre de fazer escolhas e adotar a natureza do relacionamento que quer desenvolver com os outros. As redes sociais apenas facilitam a tarefa a quem se deixa dominar pelos maus instintos. A quem claudica no Monte da Tentação.

Paulo Estêvão *

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