Uma das páginas do Evangelho que mais me impressiona é, sem dúvida, a do episódio da mulher adúltera. Releio-a muitas vezes, sempre com emoção e proveito!
A cena é bem conhecida: é de manhã e Jesus está sentado, ensinando o povo no Templo; um grupo de escribas e fariseus irrompe, trazendo uma mulher apanhada em flagrante delito de adultério e arrastam-na para o meio; interrogam qual é o parecer dele, lembrando que Moisés mandou na Lei punir tal crime com morte à pedrada; Jesus a princípio não responde e inclina-se começando a escrever com o dedo na terra; perante a insistência, levanta-se e profere a sua sentença, que ficará a soar pelos séculos fora: “Aquele de entre vós que estiver sem pecado, que lhe atire a primeira pedra!” Voltou a sentar-se e a escrever com o dedo na terra; entretanto os acusadores foram-se afastando, um a um, a começar pelos mais velhos e Jesus ficou só com a mulher que estava de pé no meio; levantando-se, disse-lhe Jesus: “Onde estão eles? Nenhum te condenou?” E perante a resposta: “Nenhum, Senhor”, acrescentou: “Tampouco eu te condeno; vai e desde agora não peques mais”.
A misericórdia de Jesus quase provoca escândalo e não é por acaso que vários códices antigos omitem os versículos em causa do Evangelho de São João. As versões oficiais da Bíblia, seja a Vulgata, de São Jerónimo, seja a Neo-Vulgata, aprovada já depois do Concílio Vaticano II, mantêm-nos, porém, como autênticos. Estão de resto em linha com a passagem em que Jesus recomenda aos seus seguidores: “ Sede misericordiosos, como o vosso Pai do Céu é misericordioso: não julgueis e não sereis julgados; não condeneis e não sereis condenados; perdoai e sereis perdoados; dai e dar-se-vos-á!” E com o ensinamento da belíssima parábola chamada do filho pródigo, que o Papa Bento XVI propunha fosse melhor designada como do pai bondoso.
A questão horrenda dos abusos sexuais de menores, cometidos à sombra da Igreja e por servidores delas, incluindo sacerdotes, tem voltado uma vez e outra à actualidade, nos últimos anos, e nelas o papel que a opinião pública reserva à Igreja é o da mulher adúltera. Acusada de ter encoberto durante muito tempo situações de manifesta podridão, é tratada sem qualquer esforço de contextualização, menos ainda com qualquer ponta de misericórdia. Ninguém ousa defender aquilo que aliás é deveras indefensável; e nem sequer a própria Igreja, através das sua entidades dirigentes, se defende, por achar talvez que não adianta repetir o que ninguém quer ouvir, ou talvez melhor, em aberta atitude de penitência e expiação.
O espectáculo chega a ser doloroso: todos se sentem no direito de acusar a Igreja em bloco pelo mal feito por um certo número de pessoas transviadas, olvidando o muito bem da responsabilidade da esmagadora maioria dos padres e freiras e outras pessoas envolvidas nos trabalhos da Igreja ao longo de muitos séculos e ainda agora nos nossos dias. E todos lhe atiram pedras e cospem nela, como se fosse uma instituição maléfica, quando parte importante das tarefas de educação e assistência social, um pouco por todo o Mundo, continua a cargo da Igreja e das suas múltiplas instituições.
Surpreende ver a ligeireza com que pessoas, que nada têm a haver com a Igreja, quando lhe não são mesmo ostensivamente hostis, propõem soluções para problemas reais ou supostos da mesma, preconizando o fim do celibato sacerdotal e a ordenação das mulheres, nisso fazendo coro com os habituais auto-proclamados profetas dos novos tempos. Certo é que por esse caminho já avançaram algumas confissões evangélicas, havendo até quem tenha ido ainda mais longe pelas vias do indiferentismo, sem obter solução para o problema da falta de vocações, nem para o abandono da prática religiosa por muita gente, sobretudo jovens.
A Igreja já despertou para o problema dos abusos sexuais de menores e adoptou novas regras sobre ele. É preciso reconhecer que se trata de algo de repugnante, sobre o que só se pode falar, como disse o Papa João Paulo II, citando são Paulo, “com lágrimas”, de vergonha e pedindo perdão. Mas isso não satisfaz os críticos, que de caso pensado fingem ignorar que a própria mudança de atitude da sociedade em geral sobre a matéria é afinal também recente.
Com o Papa Francisco a palavra de ordem dada é de tolerância zero com a pedofilia, transparência total e colaboração com as autoridades civis. Mas já o seu antecessor imediato se pronunciara no mesmo sentido e recordo que o Papa João Paulo II, nos últimos anos do seu pontificado, chamou a Roma os cardeais americanos para determinar que acabassem com as práticas em curso de “abafar” os casos que começavam a surgir, limitando-se a muda, r os responsáveis para outra paróquia, conforme denunciou uma investigação jornalística conduzida aliás por um descendente de emigrantes açorianos, sem a qual, infelizmente, talvez se mantivesse ainda hoje tudo na mesma...
A misericórdia que julgo que a Igreja merece - ou será, simplesmente, Justiça? - inclui o respeito pelo princípio comum da presunção de inocência de qualquer pessoa acusada e até ser condenada, em processo legal e com plenas garantias de defesa, com trânsito em julgado da respectiva sentença; e também o direito ao esquecimento do passado remoto, que não adianta querer refazer a História, pois ela é o que é. No termo da recente viagem de penitência e expiação do Papa Francisco ao Canadá, com atroz cinismo, o Primeiro Ministro “esqueceu-se” que os internatos para assimilação forçada das crianças índias corresponderam a uma política de Estado, mantida ao longo de mais de um século e envolvendo outras entidades para além da Igreja, e considerou as atitudes tomadas pelo Papa como insuficientes. A reclamada revogação da” Doutrina da Descoberta” terá como consequência a saída do Canadá dos descendentes das sucessivas vagas de emigração e a entrega do território aos seus primitivos titulares, hoje comummente designados como Primeiras Nações?
*Por convicção pessoal, o Autor não respeita o assim chamado Acordo Ortográfico.
João Bosco Mota Amaral*