Diário dos Açores

A ética em sociedades complexas

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Sou leitor habitual do Expresso há muitos anos. Fiz algumas pausas, é verdade, mas sempre curtas pois, passadas duas, três semanas, regressava ao jornal, porque sentia a sua falta. Há mais de um ano optei pela subscrição digital, o que me facilita o acesso e o arquivamento. Não digo que leio cada edição de fio a pavio; foi tempo. Durante muitos anos li o jornal praticamente na íntegra, principalmente quando lecionei “Ética Empresarial” e “Ética e Direito da Comunicação”, para estar a par do que se passava e procurar temas, exemplos e problemas com interesse para a lecionação. Mas se atualmente não leio o semanário de ponta a ponta, há colaboradores a quem sou fidelíssimo, entre os quais está José Tolentino de Mendonça; se numa edição não encontro o seu texto, fico pesaroso.
A primeira vez que vi o Cardeal foi há muitos anos na televisão, numa entrevista na RTP2 a propósito de um seu livro de poesia. Impressionou-me sobremaneira a sua capacidade de ver de um ponto de vista novo as questões colocadas pelo entrevistador. As perguntas formuladas não eram nada fáceis - os amantes das teorias da conspirarão diriam que o jornalista procurava apanhar o entrevistado desprevenido - mas Tolentino de Mendonça respondia serenamente a cada nova pergunta, partindo de um ponto de vista inesperado, surpreendente, como se estivesse a “ver novas todas as coisas”.Depois dessa entrevista, fui acompanhando o poeta, na altura professor da Católica, em Lisboa. Durante o tempo em que foi vice-reitor, participei em várias reuniões de júris de doutoramento presididas por ele, em que, para além da capacidade de ver e abordar as questões de um ponto de vista sempre surpreendente, era patente a rapidez com que percebia o ambiente e o sentido das intervenções dos participantes, o que lhe permitia resolver questões, quer práticas, quer de fundo, por vezes muito sensíveis. Revelou-se uma pessoa com quem era fácil o contacto.
O Cardeal José Tolentino de Mendonça, no texto “Falar de Gerações”, publicado na revista do Expresso de 5 de de agosto, pergunta “se, num mundo em clara mutação como é o nosso, ainda é possível falar de gerações”. Numa época em que o paradigma da rotura é tão evidente, será possível falar em gerações, isto é, é possível encontrar continuidades, não apenas biológicas, entre os diversos grupos etários que convivem no mesmo tempo cronológico? Faz sentido falar em gerações se, por exemplo, houver uma certa continuidade do código moral dos diversos escalões etários que convivem historicamente? Ora o fosso cultural que hoje verificamos entre o que tradicionalmente chamamos gerações é de tal modo profundo que a geração biológica parece não ser acompanhada de uma real “geração” no que diz respeito à cultura. Cá está aprova provada de como o poeta José Tolentino de Mendonça possui uma capacidade extraordinária de ver matizes da realidade que passam despercebidos a muitos de nós.
Este fosso cultural intergerações levanta problemas profundíssimas e coloca-nos perante experiências paradoxais. Se, por um lado, olhando com atenção para a nossa sociedade, constatamos que parece campear um individualismo radical, em que cada um parece viver fechado sobre si, passando ao lado dos que estão à sua volta, por outro, experienciamos a nossa interdependência enquanto comunidade humana como uma realidade avassaladora a que não conseguimos escapar; a vivência da pandemia e o impacto da Guerra na Ucrânia são bem a prova disso. Estas experiências paradoxais impõem à reflexão ética problemas e dificuldades acrescidos.
Costuma dizer-se que o primeiro tratado de Ética da História da Filosofia é a Ética a Nicómaco, de Aristóteles; ora, nesta obra, o seu autor fala da moral que se vive na relação eu-tu, eu-outro, uma moral da relação de proximidade social e temporal. (Bem sei que esta minha afirmação sobre a ética de Aristóteles precisaria de uma larga explicação aqui impossível por falta de espaço). Se pensarmos noutros autores que influenciaram imenso a Ética Ocidental, como Tomás de Aquino e Kant, verificamos que a reflexão sobre a moral andou, no Ocidente, fundamentalmente à volta da relação eu-tu, eu-outro. Só muito recentemente se começou a dar espaço à problemática da relação eu-outros, que encontramos, por exemplo, na obra de Paul Ricoeur. O ser humano vive com; com um tu perante quem está aqui e agora, e perante vários outros, próximos ou afastados, que são afetados pelo nosso agir no curto, médio e longo prazo. Mais, vivemos sempre em estruturas sociais, económicas, culturais, religiosas e políticas; vivemos integrados numa família – marido, mulher, filhos, avós, tios, sobrinhos; trabalhamos interagindo em estruturas devidamente organizadas - empresas, instituições da sociedade civil, estruturas do poder político, organizações culturais, sociais e religiosas.
Em todas as estruturas em que estamos inseridos, relacionamo-nos com pessoas, temos relações humanas que têm, estruturalmente, uma dimensão moral. Algumas dessas estruturas são tecnicamente muito complexas, evoluem rapidamente e têm uma plasticidade enorme. Imaginemos grandes estruturas sociais como uma grande empresa, a estrutura governamental de um país, um grande hospital; são estruturas que podem envolver várias centenas e mesmo milhares de pessoas com funções e papeis diferentíssimos, que devem colaborar em ordem a que a finalidade da estrutura seja atingida. Nestes casos, a clareza da moralidade das relações eu-tu, relações próximas em termos sociais e temporais, é mais difícil de encontrar e discernir devido às múltiplas e complexas relações em presença. Talvez seja por isso que pessoas aparentemente íntegras nas suas relações pessoais se revelam pouco recomendáveis nas relações de trabalho ou na atividade política. Também foi a referida complexidade que levou à elaboração de éticas de diversas profissões como Unidades Curriculares em diversos cursos, algumas delas atingindo tal dimensão e amplitude que parecem ter já autonomia académica, como é o caso da Bioética, da Ética Empresarial, da Eco Ética, etc.
Sem negar, de modo nenhum, a necessidade dessas éticas aplicadas, essas éticas especiais, como se designavam antigamente, penso que há um ponto de partida basilar sem o qual nada feito. Há um princípio formal da vida moral universalmente aceite: “o bem deve ser feito e o mal evitado”.As dificuldades começam quando tentamos definir o que é bem e o que é mal. Essas dificuldades não invalidam o princípio, isto é, a distinção entre o bem e o mal; não é admissível que tudo valha a mesma coisa. Por outras palavras: o relativismo moral é inaceitável e socialmente impossível; inaceitável, porque uma vez aceite teríamos o desrespeito pela dignidade de cada ser humano, e impossível, porque numa sociedade regida pela lei da selva, a luta de todos contra todos, é impossível a convivência humana. A dificuldade, portanto, está em definir o que é bem e o que é mal, bem e mal que não existem em si como as ideias do hiperurânio de Platão. O bem e o mal estão na ação praticada e a sua avaliação, absolutamente necessária, nem sempre é fácil, daí a necessidade do diálogo racional (Kart Otto Apel), na procura de consensos e a necessidade de elaborar éticas aplicadas.

 

Ofir, agosto de 2022

José Henrique Silveira de Brito *

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