Diário dos Açores

“Não importa aonde chegues, nunca te esqueças de onde vieste”

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Empresto as sábias palavras de meu pai, João de Lima Furtado, para definir a minha “primeira vez” nas festas de Sant’Ana.
Furnense, emigrou ao Brasil aos oito anos de idade, sem nunca esquecer suas origens. Com aquele sorriso aberto, tantas vezes repetiu essa fala, geralmente para coroar os bons momentos, com uma atitude que o mundo precisa tanto: humildade e simplicidade.
Ao chegar à freguesia de Furnas, fomos invadidos por aquele sentimento religioso, que infelizmente muitos confundem com atrativo turístico. Enfeitar a casa, enfeitar a rua com tapetes de hortensias, ir às missas e solenidades, desfrutar do convívio, dos serões e das tradições alimentadas por gente de bom coração: foi uma maratona, mas valeu muito a pena!
Recebi a bandeira de Sant’Ana como oferta de uma prima querida para sinalizar a casa com a devida devoção. Respeitosos, meu irmão e eu, adornamos a fachada da casa para saudar a padroeira da freguesia de Furnas. Esta seria só uma das muitas surpresas boas e reafirmação da fala de meu pai. Os músicos do Duo TopFurnas, Hermengildo Galante e Paulinho Pimentel, prepararam uma linda homenagem, guardada a 7 chaves até o último minuto.
A dupla vem despontando com o seu jeito “da nossa gente” de ser e pela firme missão de inovar o cancioneiro furnense. Ainda assim, não se esqueceram de prestigiar os muitos imigrantes presentes no Cine Teatro Vale Formoso com as serenatas saudosas que muito os representa, de autoria dos genais Benjamim Rodrigues e Viriato Costa. Olhos marejados. Na companhia de Álvaro Melo na harmónica, o “Adeus às Furnas”, saiu embargado da plateia como o hino maior dos que foram obrigados a sair de sua terra, sem nunca dela se afastar.
 Os protagonistas da noite foram moradores “da mesma rua do auditório”, os Senhores Carlos Sousa Vieira( in memorian) e Gualter Furtado, industrial e economista respectivamente. Comprovando que santo de casa faz milagre, a trajetória destes cidadãos comuns mostrou que ambos alargaram fronteiras para além do previsível, tanto em São Miguel, como em todo arquipélago e Europa. A construção da primeira sede da junta de freguesia, no Parque José Tavares, a reabilitação da Sociedade Harmónica Furnense e uma extensa contribuição para o desenvolvimento agrário e da comunidade local jovem, foram só algumas das realizações de Carlos Vieira. Da parte de Gualter Furtado, atualmente Presidente do Conselho Económico e Social - CESA, as notícias chegam quase que diariamente. Diferentemente dos seus colegas de profissão, Gualter Furtado sempre enxergou cenários de vida por trás de cenários económicos e preocupou-se com soluções pelo bem estar das pessoas. Sobretudo, mantém-se popular entre todos, conhece e valoriza cada metro quadrado de sua freguesia. O amigo de infância António Galante resumiu bem o perfil da personalidade furnense: “no governo, na TV, nos jornais, em toda parte é o Dr. Gualter. Aqui nas Furnas é o Gualter de sempre”.
Já falecido, o Sr. Carlos Vieira foi representado pelo filho, que também está muito ligado à música, como diretor de som do Duo TopFurnas.
Presencialmente, Gualter Furtado agradeceu a homenagem em discurso improvisado, no melhor clima da sala de casa com amigos. Emocionado, recordou cenas do repertório comum que renderam boas risadas. Fechando a noite, perdemos o fôlego com a poesia musical e profunda do cineasta Zeca Medeiros, convidado surpresa, mais uma boa da noite.
Pela manhã, tivemos o privilégio de ver a decoração dos andores de São Joaquim e Sant’Ana sendo arranjada antes de todos, no melhor estilo paparazzi. Ao cair da tarde, hora de rezar, trasladar Sant’Ana provisoriamente de sua casa, carinhosamente chamada de “igrejinha velha”, para a Igreja da Alegria. Bum, bum, bum: a Filarmónica pedia silêncio para a passagem do cortejo, que seguiu majestoso até o seu destino. Já de noite, Sant’Ana pôde descansar de seus fiéis. Em ritual mais profano, dançamos na praça, nos divertimos muito ao som da e fomos muitos felizes em família, degustando sandes de porco, entre beijinhos, saudades em tantos encontros adiados pela pandemia. Primos e mais primos: sem palavras em rever a todos com saúde, que aqui me estendo para prestar minha própria homenagem: Álvaro, as Anas, as Adrianas, a pequenina Alexandra, Alexandre, Andreia, Belinha, Carlos Alberto, Carolina, Dora, Duarte, Tio Duarte, Tia Estrela, Faustino, Felipe, Fernando, Goreti, Graça, José Manoel, Julinha, Ibéria, Inês, Isa, Jimmy, os muitos João, Liana, Lídia, Leonor, Lisete, Lurdes, Tia Lourdes, Maria de Deus, Maria Eugenia,Tia Maria do Carmo, Mimi, Raquel, Santo Cristo, Sara, Ricardo, Ruth, as Teresas, Vitória e os segundos e terceiros níveis de parentesco que ainda nem conheço.
No domingo, o almoço alegre e farto com muito calor humano e do verão, entre mais de trinta pessoas, naquele leilão que só quem se ama suporta. Regada a muita comida, como deve de ser, a tarde ilustre para renovar nossos votos junto à grande senhora começou. Se para os furnenses a procissão já é lembrança para o ano todo, para nós, imigrantes é como reconectar mais um laço de afeto em toda a nossa existência. Neste ano, tivemos o privilégio da participação de meu irmão, Duarte Furtado, como arauto da misericórdia da padroeira. Um orgulho para sempre.
Foram quase cinco horas em pé, com roupa e sapatos adequados para a ocasião, mas totalmente desconfortáveis para as altas temperaturas. Valeu o sacrifício! Pudemos ver em câmara lenta a freguesia, seus ocupantes e costumes antigos como as fachadas decoradas e os incensos ardentes nas ruas. Por outro ângulo, os imigrantes e turistas e o quanto aquela passagem era magnífica e cheia de paz. Chegamos à casa exaustos e certos de termos honrado o sobrenome “Furtado” que herdamos do nosso pai.
Infelizmente tivemos que declinar da grande festa do enterro dos ossos na lagoa. Uma boa desculpa para voltar no ano que vem e preservar essa chama que habita os filhos de diáspora.
Furnas poderia ser a minha terra de nascença.
É a minha terra-mãe adotada.
Assim quis a vida.


(*) Jornalista e apresentadora de TV no Brasil. Correspondente do Diário dos Açores no Brasil

Marisa Furtado (*)

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