Diário dos Açores

Declínio e poder das margens

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   Escutar a “Abertura de 1812” é entender melhor porque Tchaikovsky (1840-1893) foi tão arrebatadamente aclamado pelo povo russo. Apesar da sua vida trágica, no hino patriótico exaltam-se as lutas e sentimentos de vitória, ressonâncias de “A Marselhesa” toadas populares, sinos, canhões do modo mais exuberante e excessivo.
 Na realidade, só em 1880, o Czar Alexandre II pediu ao compositor que narrasse em verso a invasão da Rússia por Napoleão. A alusão ao hino da Revolução, A Marselhesa, revela como os novos nacionalismos e as reformas já criavam fortes raízes no “Urso Branco” ocidentalizado.


Não chegara porém a hora da liberdade para os russos, exauridos de forças e com número incontável de mortos.     
A morte do Czar Alexandre I em 1825 lançara a perplexidade entre todos. Nem Constantino nem Nicolau queriam aceitar o trono (in. Montefiore). Face a uma sublevação estendida por todo o território, Nicolau aceitava ser imperador e, logo o seu primeiro dia, seria manchado do sangue dos revoltosos enquanto a guerra da Crimeia continuava. A conselho do historiador Karamzin, iniciava uma política de medo numa longa geração da polícia secreta.
Entre as insurreições internas e a defesa dos territórios, o Czar admirava o escritor Pushkin (1799 -1837). Libertou-o da censura mas, suas ideias progressistas, feriram-no dolorosamente  pela ingratidão. Pushkin elevou a cultura popular tornando-se num romântico realista. Os seus versos divulgaram expressões e lendas tradicionais, e a riqueza e pluralidade do idioma russo. O seu romance em verso, “Yevgeni Onegin”, seria um grande cenário da vida russa e transformou-se na maior ópera de Tchaikovsky.
O Czar preocupava-se com a sensibilidade e bondade do filho Alexandre e castigava-o pela compaixão diante dos revoltosos. Este herdeiro, na cerimónia do juramento da autocracia, rompera em lágrimas comovendo todos os presentes. Nicolau temia as indecisões do filho e os excessos amorosos desde adolescente.
Além das sublevações internas, Nicolau via-se encurralado pelos turcos e, num gesto diplomático apareceu “incógnito” à rainha Vitória já casada com o príncipe Alberto. A aliança pretendida suscitou irritação e recusa.
Sinceramente queria transformar-se num déspota esclarecido. Rússia necessitava de grandes reformas mas que não passaram de grossos volumes que nunca viram a luz do dia, nem a libertação dos mujiques.
Os reformistas passavam agora a dialogar nos salões onde se propagavam ideias revolucionárias. O nacionalismo que o Czar firmou não passou das promoções só para “russos ortodoxos”. Todos os outros gozavam de liberdade limitada. Os odiados judeus, sempre mal vistos, foram os que mais sofreram.
O escritor Gogol (1809-1852) descreve as injustiças e corrupção face a uma população amedrontada pelos políticos e a polícia. A reação à peça de teatro “ foi de indignação geral. A sua sátira cáustica, cómica e absurda acusava o servilismo e os favores entre os burocratas face à espera do “Inspector”!A sua falsa presença aterrava os funcionários. Pushkin e Gogol foram exilados quando a censura proibiu as suas obras.
Gogol, amigo de Pushkin, (1837) sente-se extremamente perturbado quando este morre. O romance “Almas Mortas”, inspirado no “Inferno” de Dante” tem aspetos terríveis da vida rural de opressiva banalidade, estupidez e a constante corrupção que o rodeava. Sempre inquieto, sentia uma missão para bem da humanidade na mensagem da sua obra. Morreu mergulhado num misticismo profundo.
O Congresso de Viena é um momento retrógrado de regresso “tal como antes” com representantes dos países europeus. (1815) Nada restauraria o que fora derrubado ou abalado no curso das revoluções e guerras. A revolta de 1848 na França veio mostrar como as novas ideias contrariavam a ambição de Alexandre II conquistar Constantinopla.
O príncipe Metternich deixara a frase “Quando Paris espirra a Europa constipa-se”. Nicolau II não acompanhou as consequências destes acontecimentos sem ficar atordoado de derrotas. Sebag Montefiore denominava este Czar Júpiter, pela imponência diante dos súbditos e estrangeiros.
Nenhum Romanov mereceu como ele ser o Libertador. No seu fim da vida, a intransigência dava-lhe ares de fanfarronice e tornou-se “como o carvalho que não sabe curvar-se e perece na tempestade”. A sua face “sulcada de sofrimento e palidez extrema” revelavam que vivia assombrado pela morte. As discrepâncias entre as forças da velha Rússia, a tecnologia e a Revolução Industrial da Europa tornavam impossível qualquer vitória.
Quando Nicolau morreu (1855) no seu leito de morte, ergueu a mão e fechou em punho mostrava ao filho a temível autocracia.
Nenhum Romanov foi preparado para governar como Alexandre II! Porém encontrava uma Rússia em ruínas, corrupta e fraca “um mundo que se desmoronava” além da continuação da guerra da Crimeia.
O país estava exausto, dominado pelos subornos, roubos e corrupção. Encorajado pela opinião pública, o Czar iniciou um período de reformas radicais especialmente junto da aristocracia. A independência da Turquia (1856) mais a impossibilidade de uma frota militar (in. Grimberg) foi a maior perda que os Romanov enfrentaram com a assinatura de paz em Paris. Quando se recordava desse pesadelo o Czar gritava desesperado –“Eu assinei!”.
O título de “Libertador” aponta para as reformas da aristocracia que dominava os servos. O filósofo político Chicherin (1828-1904) aconselhava-o a fortalecer o poder para só depois efectuar reformas. Após muita ponderação e seis anos de governação, resolvendo muitos obstáculos, assegurou o futuro com uma nova organização económica que a Rússia exigia
Alexandre abolia a ordem secular fundamentada da servidão nesse imenso território. (1861) A liberdade, sem a posse das terras, trouxe muitos mujiques para as cidades como operários. Formariam uma classe independente dos seus senhores. Surgiam novas ordens e a liberdade de imprensa, apesar do Czar a detestar.
Com os reformadores “contra a ignorância e egoísmo dos nobres” a emancipação levou longos anos a tornar-se realidade por entre retrocessos e avanços. Alexandre não conseguia confiar em ninguém, conservou sempre um prudente secretismo e ódio à imprensa. A escolha do conservador conde Panin para a emancipação desanimou os liberais. Todavia Panin cumpriu as ordens e a liberdade dava-se “de cima para baixo” . A autocracia causara a servidão, seria esta a aboli-la. Numa atmosfera de extrema tranquilidade, mais de 22 milhões de servos tornavam-se livres! Com lucidez diante da “nova era” o Czar declarava ao embaixador Bismark, (1815-1898) íntimo da Corte imperial:
- Sabe Deus onde teríamos ido parar na questão da aristocracia rural e dos camponeses se a autoridade do Czar não fosse suficientemente poderosa.
Percebendo os interesses da Inglaterra e do Canadá pelo Alasca afastou o perigo vendendo-o aos Estados Unidos 1867.
Ao conhecer a filosofia política de Tocqueville (1805-1859) entendeu como o momento mais perigoso de um governo era implementar a liberdade aos servos que caiariam em absoluta pobreza. O peso de um passado de servidão causava reveses a cada reforma.
Ao pensar no futuro, o político e sociólogo, Tocqueville intuía que os russos e os anglo-americanos “parecem destinados a controlar os destinos de metade do mundo”.

Lúcia Simas  *

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