Diário dos Açores

Música no Campo

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Quando eu andava na Escola Primária, aí pelos começos da década de 50 do século passado, era costume a Banda Militar dar concertos no Coreto do Campo de São Francisco, durante o Verão, às quintas e Domingos, ao começo da noite.
A Banda vinha em formatura desde o Castelo de São Braz e subia marchando a pequena ponte que dava acesso ao Coreto. Como muitos se lembram havia um tanque em volta do Coreto, com vasos de nenúfares, desaparecido, sem grandes argumentos, na mais recente reordenação do espaço, levada a efeito pela Câmara Municipal. Por sinal foi pena não se ter aproveitado a ocasião para construir um espaço mais amplo, donde resulta que já tenha havido concertos com os músicos cá fora e parte do público a assistir debruçado na grade do Coreto.
Mas voltemos uns setenta anos atrás, para lembrar tempos longínquos… Instalados os militares nos seus lugares, o Chefe da Banda assumia o papel de Maestro e o ar enchia-se de sons harmoniosos, numa execução cuidada do programa previamente divulgado nas colunas do Diário dos Açores. Falo deste jornal porque era o que se assinava em casa de meus Pais, mas é natural que o dito programa também aparecesse nos outros.
O concerto tinha duas partes, com um intervalo pelo meio. Era nessa altura que os sinos da torre da Igreja de São José davam as Trindades e toda a gente se punha de pé e os homens se descobriam. Impressionava deveras tal atitude de respeito e por isso ainda me lembro dela, embora duvide que muitos rezassem as orações prescritas, eu certamente não o fazia…
A Banda tocava músicas conhecidas e outras nem tanto: aberturas, marchas, composições do próprio Chefe ou de outros colegas militares também. Havia quem seguisse atentamente o concerto e até se aproximasse do relvado que rodeava o tanque, mas a maioria do povo passeava despreocupadamente dando voltas ao Campo ou conversava sentados nos bancos. (Quando estive em Cabo Verde, na cidade do Mindelo, em visita oficial, como Presidente da Assembleia da República, também andei às voltas de um coreto, convivendo com a população, que mantinha antigas tradições musicais.)
Pelas 21 horas o concerto terminava e a Banda regressava ao Castelo, respeitando a formatura inicial; meia hora depois soava o toque de recolher, o portão era fechado e as famílias presentes no Campo iam também regressando a suas casas, muitos passando ainda pelo adro da Igreja da Esperança, para uma derradeira oração, de joelhos, à porta, ao Senhor Santo Cristo dos Milagres.
Nos outros dias da semana, o Campo animava-se com a presença de muitas famílias que lá iam passar na fresca uma parte do serão. Os mais novos brincavam no enorme terreiro, correndo aos polícias e ladrões, os rapazes, enquanto as raparigas faziam danças de roda, cantando as melodias usuais, como “Rosa branca ao peito” ou “O ladrão do meio” ou “ A Terezinha de Jesus deu uma queda e foi ao chão”, que todas acompanhavam com o gesto correspondente. Para certas dessas modas de dança de roda eram admitidos os rapazes, mas em geral tinham jogos e brincadeiras em total separação.
Não faltavam outros atractivos, como as fotografias “à la minute”, tiradas pelo Senhor Madeira, conhecido pelo nome da sua ilha de origem, e que tinha uma filha que andou na catequese no mesmo tempo que eu; ou os “barquilhos” do Pai da Dona Ângela, professora, sorteados a partir de uma roda com números instalada na tampa da enorme lata em que os transportava às costas; ou os sorvetes do carrinho, anunciados por um toque de corneta, de 20 ou 50 centavos ou de um escudo, conforme o tamanho da forma e da porção de gelado, sendo certo que os de um escudo, tinham o triste fim de saltar parte do material para o chão, por as duas bolachas não serem suficientes para o aguentar… Era o justo castigo da gula ou da despesa excessiva!
Durante uns tempos, a Casa das Variedades manteve no Campo um serviço de aluguer de triciclos e pequenas bicicletas. Também por um escudo podia dar-se uma volta ao Campo, a partir do grande metrosídero, sob o qual se abrigava a barraca onde se fazia tal negócio; mas era certo e sabido que todos os alugadores prolongavam o tempo de uso do veículo, fazendo sucessivas subidas e descidas no troço em frente ao Hospital e à Igreja de São José, para desgosto e protesto do empresário. Afinal um escudo era dinheiro e meu Pai não estava disponível para desembolsar tal quantia, e logo em duplicado, porque meu Irmão Francisco também reclamava benefício idêntico, senão em dias muito assinalados.
Com a construção da Avenida Marginal, o Campo de São Francisco foi ficando abandonado, como lugar de concentração de famílias nas noites de Verão. Até a Banda Militar deixou de dar concertos lá.


* (Por convicção pessoal, o Autor não respeita o assim chamado Acordo Ortográfico.)    

João Bosco Mota Amaral*

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