Diário dos Açores

A ‘rentrée’ da crise

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Opinião

Temos um problema crónico que nenhum governo vai resolver nos próximos tempos: os Açores são fortemente dependentes do exterior e a tendência é para agravarmos cada vez mais este hábito histórico se continuarmos a produzir pouco e mal.
Nos produtos alimentares e bebidas, os mais transaccionados, importamos no último trimestre 64% e exportamos 49%, sendo que tudo o que entrou nas nossas ilhas já veio mais caro, a juntar-se aos preços incomportáveis dos produtos locais.
Não admira, por isso, que o cabaz de bens e serviços, analisado pelo IPC do Serviço de Estatística dos Açores, está mais caro cerca de 6,27% no final do último trimestre do que em junho de 2021.
O cenário actual já dá sinais de alguma crise nas empresas e famílias e se nada for feito, nos próximos tempos, para atenuar o choque que aí vem, vamos ter uma região mais pobre e com graves problemas para enfrentar.
As famílias já estão a endividar-se cada vez mais e as empresas a retrairem-se nos investimentos. 
Os empréstimos concedidos pela banca açoriana a particulares subiram no segundo trimestre de 3.122,5 milhões de euros para 3.246 milhões (mais 123,5 milhões num ano), sendo que para o consumo e outros fins o aumento é de 827 para 903 milhões de euros. 
Ao contrário, o valor dos empréstimos às empresas foi de 1.713,9 milhões de euros,  um valor inferior em 4,8% ao observado no trimestre homólogo (menos 85,5 milhões de euros), a provar que as empresas estão a investir menos.
O sector do turismo, por agora, está a salvar muita gente de dias difíceis, mas quando regressarmos à tradicional sazonalidade de Outono-Inverno, vai haver muita gente a pedir ajuda.
O sector laboral queixa-se de falta de mão de obra, o desemprego está a níveis muito baixos, mas estamos a criar um outro problema, que é o aumento da precariedade.
Analisando ainda o segundo trimestre deste ano, verifica-se que o número de trabalhadores por conta de outrem (101,2 milhares) regista um aumento de 7,9% em termos homólogos e de 6,4% relativamente ao trimestre anterior, o que é uma boa notícia. 
O número de trabalhadores com contrato sem termo (83,9 milhares) aumentou neste trimestre 8,1% em termos homólogos e 5,5% relativamente ao trimestre anterior, mas os trabalhadores com contrato com termo (14,4 milhares), os tais precários, registam um aumento significativo de 13,4% e de 11,6% face ao 2.º trimestre de 2021 e ao 1.º trimestre de 2022, respectivamente.
No meio destes sinais vamos ter uma outra tempestade a que nenhum governo prestou atenção, até agora: a tempestade demográfica.
Temos ilhas a caminhar para a desertificação e não se vêem medidas para combater este problema, que dá sinais de agravamento galopante.
No período compreendido entre janeiro e maio deste ano, verificou-se uma variação homóloga negativa de 6,8% no total de nados-vivos, e uma variação homóloga positiva de 23,8% no total de óbitos, que dá para pensar sobre o que se está a passar (efeitos da pandemia?). 
O saldo natural nos primeiros cinco meses de 2022 foi mais negativo (-465) do que nos mesmos meses de 2021 (-172), uma anormalidade que faz soar as campainhas demográficas.
Os políticos vão regressar recarregados de energia, prontos para nos fazer crer que tudo está bem e vai melhorar mais, mas é bom que acordemos para a realidade, porque ela é que nos consome e não a ilusão dos políticos.
Gerir prioridades e expectativas será, cada vez mais, uma missão diária dos nossos governantes, que não podem continuar a fazer de conta que os problemas não existem.
Um governo que se consome, permanentemente, em trapalhadas internas, não vai ter muito futuro.
Basta ouvir, por estas ilhas fora, as gentes de todas as classes e diversidades, para perceber que há muito descontentamento e desilusão.
Era bom que os nossos políticos tivessem constatado isso nas suas férias, em vez de se preocuparem com o seu conforto pessoal e institucional.
Nenhuma população pode compreender que seja mais fácil ao poder regional aumentar os gastos de um parlamento em vários milhões, para acomodar assessores e consultores, e não haja dinheiro para comprar um ar condicionado para a aerogare do Pico ou enviar mais médicos e melhores equipamentos para as ilhas mais carenciadas.
A nível nacional, assistimos segunda-feira a mais um triste espectáculo deste grande artista político que é António Costa, a anunciar uma montanha a parir um rato.
O pacote de 2,4 mil milhões de euros de apoio às famílias é, na verdade, um logro, cheio de alçapões, que pouco ajuda os cidadãos contribuintes, carregados de impostos para os governos glutões.
Um governo que arrecada mais de uma dezena de milhar de milhões de euros em receita fiscal extraordinária e devolve apenas 2,4 mil milhões, só pode estar a gozar com o povo.
 Os governos da República e da Região estão a agir em câmara lenta e de forma bastante distorcida no combate a esta crise.
Com  esta ‘rentrée’ o governo da coligação entra numa recta descendente para a segunda metade da governação.
Era bom que corrigisse o rumo muito irregular até aqui, com algumas coisas boas mas muita coisa escusada, e a oposição se tornasse mais alternativa e menos alternadeira na crítica.
Bem-vindo de novo, caro leitor, à realidade!
 

Osvaldo Cabral
osvaldo.cabral@diariodosacores.pt

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