Há uns dez anos, por causa de um filme ainda em projecto, contactei o na altura director da RTP Açores Pedro Bicudo. Interessava-nos ter para esse filme, uma jornada sentimental em busca dos discos da minha adolescência, o acesso ao rico acervo de imagens de arquivo da televisão açoriana. Bicudo acedeu ao pedido e disse: disponibilizo as imagens mas com uma condição, a de a RTP Açores passar o filme. O filme passou agora, em Agosto, por decisão de Rui Goulart e de Paulo Correia, em momento de aniversário da televisão açoriana.
Demorou mas assim aconteceu quando ficou pronto, muito tempo depois, e de ter feito uma jornada por vários festivais internacionais e nacionais (agradou-me, em especial, o facto de ter sido exibido no Encontros do Cinema Português, em Coimbra). Importante notar desde já: apesar de ser o autor da ideia do filme, não sou o realizador e foi uma equipa alargada, feita com pessoas generosas, de vários ofícios, que se disponibilizou para participar. O realizador é Tiago P. Carvalho, que conheci quando realizou uma série que passou no canal Q chamada melancómico. Estávamos os dois numa esplanada do bairro das Amoreiras e ocorreu esta ideia – sabe-se lá vinda de onde, como acontece com estas coisas da criatividade.
Este “filme dos discos” – e partilho assim a sinopse – tem um dispositivo ficcional que passa por uma série de encontros com amigos, nos quais pergunto se viram essa colecção dispersa, e é atravessado por um jogo entre imagens “recentes” e imagens, cá está, de arquivo, pendendo, muitas vezes, para a paisagem religiosa que marca quem cresce nos Açores. No fundo, é uma tentativa, romântica e frustrada, como só pode ser, em busca de um paraíso perdido chamado adolescência. Muitos de nós têm essa tentação. Cada um teve a sua banda sonora, os seus discos ou, para gerações mais recentes, os seus Cds ou (mesmo) os seus ficheiros e pretende resgatar a época em que os ouviu. Ou por outra: o filme, apesar de assentar numa procura pessoal, sempre quis que cada um faça o seu próprio percurso pelos seus próprios discos perdidos.
O filme, que passou numa versão muito inicial, inacabada, no Festival Panazorean, teve um orçamento pequeníssimo, viveu da vontade de todos, e só muito mais tarde, após um movimento do Tiago, associado a uma produtora, recebeu um apoio do Instituto do Cinema e do Audiovisual para finalização. Que é como quem diz: para se fazer acabamentos naquilo que ainda se podia melhorar.
Resultou numa espécie de road trip e videoclip de uma hora – um formato justificado pelo facto de o objecto ser, antes de mais, musical. E assume o lado, se quisermos, cru, com ruído, de câmara à mão, instável, ela mesma agitada, na procura de uma vivência e de uma época.
As reacções foram diversas. E vieram, sobretudo, pelas redes sociais. Partilho uma, com o consentimento do autor das palavras, pessoa que não conheço: “Aqui um anónimo a poucos dias de deixar os 47. Vi agora o programa e achei de uma nostalgia deliciosa... a parte dos Cure! Omg! Enfim, ao contrário do Netflix não há pontuação para darmos no final. Fiquei com vontade de enviar feedback, afinal o programa foi surpreendentemente original. Até guardei para mostrar aos meus amigos de liceu que acho que se vão identificar. Com quem também partilhei discos”. Outra mensagem: “Vi ontem o documentário ‘discos perdidos’ e já tinha visto os ‘novos corsários das ilhas’! Fazem redescobrir a Açorianidade (não sei se a palavra existe) que por vezes nos passa ao lado! Já agora, também era naquele banco que me sentava no liceu entre 2000-2003!”
Também houve quem não tivesse aderido. O que é naturalíssimo porque há vasto psicadelismo na forma de filmar e editar. E há quem, na terra, ao ver o filme, não se consiga distanciar de quem são os protagonistas (movimento pequenino). Mas já estou habituado. Nos meus trabalhos já recebi de uma a cinco estrelas. Houve críticas. Houve críticas de quem não conseguiu entrar na demanda. Mas há uma delas, sobre a qual quero fazer uma nota. Foi reveladora porque acusou os filmes – este e outro, que veio a seguir, de Diogo Lima e companhia – de amadorismo e até de estupidez. E veio de alguém com responsabilidades na comunidade (não interessa nomear, tal como não identifiquei os autores dos elogios). Estupidez porquê? Quem usa a palavra estúpido merece a oferta de uma resposta.
Antes de mais, é insano chamar amador a um filme, como o de Diogo Lima, que se assume como “mockumentary”, uma paródia, propositadamente precária, ao documentário. O que, dada a pessoa, “progressista”, que mandou a boca, me leva a concluir que o reaccionarismo vem de onde menos se espera. A glosa não evita o lado de “quem são estes para vir para aqui com filmes e quem é que autorizou esta bandalheira”, ainda para mais em altura de aniversário. Um comentário pateta. É bom que se faça cinema por aqui. Que se continue a fazer e a experimentar, contra os discursos conservadores e insultuosos.
(Não sabia que o filme iria ficar na RTP Play. Mas lá está. Partilho o link para quem o quiser ver: https://www.rtp.pt/play/p10569/discos-perdidos).
Nuno Costa Santos *