Diário dos Açores

Os filhos dos amigos

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Vim mais uma vez celebrar os anos à minha casa micaelense. 
Agora que regressei aos Açores, não posso desperdiçar a oportunidade de celebrar o aniversário junto dos meus pais, da minha irmã, do meu cunhado, dos meus sobrinhos, do meu tio. E dos meus amigos. No chão onde me fiz e cresci. Vivo noutro condomínio insular, o terceirense, mas hoje, com a baixa dos preços das passagens interilhas, é mais fácil dar um pulo a São Miguel.
Houve algo que me deu uma felicidade maior na festa de há dias – ver os filhos dos meus amigos presentes. Cresci com os filhos dos amigos dos meus pais e isso importou e muito. E cresci no convívio com os amigos dos meus pais. Eles sabem, no essencial, quem sou, o meu percurso, os meus tropeços e as minhas façanhas. Sei o trilho que fizeram até hoje e também de alguns dos seus engulhos e orgulhos.
Digo algo escandaloso: durante anos, não sabia, com rigor, os nomes dos filhos de alguns amigos – falo, sobretudo, dos que vivem nos Açores e que via poucas vezes (e ainda vejo). Exagero. Importante exagerar no caso. Quando digo “não sabia” quero dizer “tinha uma ideia” mas às vezes os nomes não vinham de imediato, quando os convocava, como deviam vir, tal é a proximidade e a cumplicidade de anos que tenho com os pais. Os nomes estavam algures numa divisão pouco usada da memória. Um quarto de hóspedes para hóspedes que nunca chegavam. 
Uma vez escrevi, a partir de um episódio biográfico, sobre a importância que um grande amigo dos nossos pais pode ter nas nossas vidas. O entendimento é meu, talvez alguns se reconheçam. Um dos amigos de infância do meu pai, certa vez, quando estava na passagem da adolescência para a idade adulta, fez aquilo que só um amigo de infância, daqueles que importam e se importam, pode fazer: teve uma conversa comigo para me dizer algo que eu não iria, na altura, aceitar ouvir do meu pai. 
Estávamos a caminhar, ele aproximou-se, pegou-me no braço com delicadeza e disse-me umas palavras que não esquecerei. Algo como “pensa nisto, olha que o teu pai pode ter razão”. 
Aquilo que ele fez, intermediar, com sabedoria, sem imposições, por sua iniciativa, sem querer passar mensagens, uma relação entre um pai e um filho é, para mim, um dos exemplos mais importantes que tenho da amizade. Só foi possível porque o conheci quando eu era pequeno, porque aparecia em nossa casa, porque íamos, todos, a casa dele. 
Qual o motivo para esta lacuna nas gerações de pais de hoje? O não se valorizar tanto este convívio. Algum vício urbano de adiar encontros, de não se comprometer, de algum comodismo. O querer poupar os filhos a chatices – as que, quando era miúdos, tínhamos de ultrapassar quando íamos a casa dos amigos dos nossos pais e eles ficavam até altas horas a jogar à cartas.
Claro que a circunstância de vivermos, alguns de nós, longe uns dos outros torna a possibilidade de convivência mais rara. Mas, caso a saibamos aproveitar nas férias a limitação pode ser eliminada. E foi-o neste Verão, numa casa que marcou a nossa juventude.
Há algo para fazer. Falo por mim e quem sabe por outros, insulares também. Como é que não convivemos mais com os filhos dos nossos melhores amigos e eles connosco? Por que é que não juntamos, mais vezes, os nossos filhos? Somos da mesma ilha, convivemos na maravilha das mesmas paisagens, atravessámos as mesmas canadas, comovemo-nos a ouvir as mesmas músicas, fizemos viagens de carro por estas estradas, bebemos as mesmas cerveja nas tascas de São Miguel, fomos às mesmas discotecas, tomámos banho nas mesmas águas férreas debaixo das melhores luas, fizemos as mesmas asneiras e as pequenas patifarias no milagre desta Natureza, partilhámos tanto e agora não sabemos quem são os filhos uns dos outros? 
É que a nossa amizade não se extinguiu, ao contrário de tantas outras. 
Existe, tem tido a suas intermitências por motivos práticos, sobretudo, mas existe e está sempre pronta para ser reacendida – num encontro, num aniversário, num (agora, que começam a acontecer com os pais) funeral. 
Mas está por completar. 
Fundamental fazer alguma coisa contra isso.

Nuno Costa Santos 

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