Não é muito comum, e por isso é digna de monta, a afirmação plena de um grande pintor enquanto mestre na arte da literatura. Trata-se de um caminho exigente e de uma vivência difícil entre mundos, sendo certo que representa também prova do inconformismo e da indagação incessante por formas distintas de afirmação das próprias emoções. No fundo, procura o autor dialogar com o outro a partir de duas realidades distintas: a pintura e a escrita, e sem que uma se sobreponha à outra. Tomaz Borba Vieira parece determinado em prosseguir este trilho da «experimentação diversa», o que lhe tem permitido não apenas consolidar a sua mensagem em ambas as expressões, como também fazê-la chegar a públicos distintos. Ao contrário do que talvez se pudesse antever, considerando a formação académica do autor, a componente pictórica nunca assume uma posição sobranceira sobre o próprio texto, mas também não se reduz à mera ilustração textual; ela encontra-se, antes, ao serviço das próprias diegeses, valendo-se delas, complementando-as e conferindo-lhes mais dimensão além da que vamos deslindando pela interpretação textual que vamos operando ao longo da leitura. Atestam-no o sucesso de obras como Navegação Interior – Pequenas Histórias, O Carcereiro da Vila e Outras Histórias, O Lugar da Mação u Lado de Cá.
Ao primeiro contacto, notará o leitor alguns dos traços mais enraizados na escrita de Tomaz Borba Vieira, e que se consubstanciam por uma aparente simplicidade de difícil execução, e por uma contínua fluidez, sem grandes derivas à órbita do supérfluo, o que lhe confere um andamento aprazível e capaz de suster a atenção do leitor. Tomaz Borba Vieira é, como percebemos, um contador de histórias, tornando-se praticamente impossível dissociar estas marcas discursivas da figura autoral.
Como em outras obras suas, também em Nariz de Santo e Outros Momentos são narradas, de forma quase singela, múltiplas vivências e outras tantas viagens sentimentais a diferentes épocas e geografias. Com efeito, as balizas temporais definidas pelo autor fazem-nos calcorrear a sua própria memória, resgatando desse passado um tempo vivido intensamente junto da família e amigos mais ou menos próximos. É esse desfiar de narrações tão intensas que fazem com que nós próprios partamos em busca das nossas próprias memórias e as tragamos para junto de nós, repondo, assim, alguma justiça, conferindo àquele tempo mais algum deste em que hoje vivemos. É algo que nos acrescenta e nos “calibra”, que nos demarca posturas e nos molda a personalidade. É neste momento em que abandonamos o texto do próprio autor e entramos no nosso próprio universo que a literatura acontece, e Tomaz Borba Vieira proporciona-nos essa viagem com a tranquilidade da sua escrita.
Creio não estar muito apartado da verdade quando afirmo que o prosador Tomaz Borba Vieira escreve procurando não apenas declarar amor aos seus, como também o faz em demanda da mitigação de toda a nostalgia que o assolará.
Desta vez, apresenta-nos quinze narrativas muito bem cuidadas, repletas de apontamentos históricos, psicológicos e sociais vistos e filtrados a partir da sua cosmo visão, conferida por toda uma vida repartida por diversas geografias mundiais, sem, todavia, renegar a sua conceção primeira de freguês de uma simples povoação, onde, invariavelmente, buscava o retemperar de forças, o reajustar de emoções e até a inspiração. São-nos oferecidos pequenos relances de outros tantos rasgos temporais, onde nos é possível vislumbrar a riqueza das relações familiares, dos hábitos sociais e quotidianos, onde podemos observar as relações de amizade entre pessoas muito simples ou outras de maior relevo histórico-cultural, onde poderemos apreciar a comicidade fina que perpassa toda a obra e onde poderemos ainda encontrara centelha que motiva Tomaz Borba Vieira e que se alarga num espectro desde a Pintura à Biologia, da Náutica à Religião, da História à Geografia, entre tantas outras.
Não que necessária fosse mais alguma confirmação, mas este Nariz de Santo e Outros Momentos vem atestar a maturidade e a robustez literária que Tomaz Borba Vieira já alcançou no seio das letras açorianas; vem confirmar, em definitivo, o seu lugar junto dos nomes maiores da literatura de raiz açoriana.
Telmo Nunes *