Diário dos Açores

QUANDO DISCUTIR/DEBATER É PROCURAR

Previous Article Previous Article Filme açoriano em Festival de Cinema de Hollywood
Next Article Venda de cimento continua em queda nos Açores Venda de cimento continua em queda nos Açores

Todos nós assistimos e participamos em debates, alguns mais superficiais e outros mais profundos, uns mais acalorados e outros mais serenos, e em todos eles se trocam argumentos, alguns mais racionais e outros mais estratégicos.
Quando reflito sobre este tema, recordo sempre, com saudade, o meu amigo e colega de Faculdade Eugénio Peixoto que, infelizmente, há muito nos deixou.
Foi depois do 25de Abril, em pleno PREC (Processo Revolucionário em Curso).
Encontrámo-nos num corredor da Faculdade e começámos a conversar sobre um tema de que já nem me lembro.
A partir de determinado momento, comecei a aperceber-me de que os argumentos do Eugénio não tinham nada a ver com os meus, nem lhe tocavam.
 Resolvi, então, formular um argumento e, antes de ele começar a responder, perguntar-lhe: “Eugénio, o que é que eu acabei de dizer?” Ele olhou para mim muito sério e, passados uns momentos, começou a rir retorquindo: “nem te ouvi; enquanto falavas, eu pensava no que ia dizer quando te calasses!”
Rimos à gargalhada.
Uma discussão, um debate, para serem dignos desse nome, para serem racionais, exigem que os participantes se ouçam uns aos outros, que haja verdadeiramente troca de argumentos pois, se isso está completamente ausente, o debate não é um diálogo, mas dois monólogos paralelos, sem intercomunicação, pelo que a conversa não levará a lado nenhum.
Discutir é pensar em conjunto, é uma atividade colaborativa; debater é uma troca de pontos de vista, uma troca de argumentos, pelo que exige ouvir o(s) outro(s), para ter em conta o que ele(s) diz(em).
Discutir exige uma atitude de abertura: escutar e dizer o que se pensa. Dialogar é uma procura em conjunto e pressupõe a Verdade, não no sentido de algo acabado, indiscutível, mas como ideia reguladora à maneira de Kant.
Se o conceito de verdade não tem valor, não faz sentido discutir e a discussão reduz-se a um mero exercício retórico, um jogo de palavras que se aproxima do “falar para não estar calado”.
Se a verdade não existe, o debate, o diálogo não é racional, mas simplesmente estratégico: visa persuadir, ludibriar, explorar o(s) outro(s), não o(s) respeitando na sua dignidade.
Esta introdução, já um pouco longa, vem a propósito de um livro que acabei de ler, cujo titulo é DOIS DEDOS DE CONVERSA SOBRE O DENTRO DAS COISAS. Um Crente, um Ateu e a Verdade como Provocação [Braga: Editorial Frente e Verso, 2013].
Quando, numa visita a uma livraria, o encontrei, o título em maiúsculas não me disse nada, mas chamou-me a atenção o nome de um dos autores: Bruno Nobre, meu antigo aluno, um dos mais brilhantes, em “Ética Fundamental” e “Éticas Aplicadas”, na Faculdade de Filosofia e Ciências Sociais da UCP, em Braga, e que, terminada a sua formação jesuítica, já ordenado padre, regressou à Faculdade e assumiu a regência da minha Unidade Curricular “Ética Fundamental”.
Numa das orelhas da capa, lá estava a informação: licenciado em Engenharia Física Tecnológica (2000), doutorado em Física Teórica pelo Instituto Superior Técnica (2005), entrou na Companhia de Jesus (2005); licenciou-se em Filosofia pela Faculdade de Filosofia e Ciências Sociais da UCP, em Braga.
O nome do outro autor, Pedro Lind, nada me dizia.
Na referida orelha, vinha uma breve informação do seu percurso académico: licenciado em Física (1999) e doutorado em Física-Matemática (2003); depois de alguns anos de permanência na Alemanha como investigador, nesta categoria trabalha na Universidade de Lisboa desde 2008.
Os dois autores são, portanto, formados em Física, uma ciência muito exigente em termos de rigor e muito prestigiada, cujo discurso é, hoje, olhado como o paradigma de um saber em que se pode confiar, embora no livro os dois autores reconheçam, explicitamente, as limitações do conhecimento científico; isto é, os dois autores defendem que há conhecimento para lá da ciência.
Outro elemento da capa me chamou a atenção, os nomes dos autores dos dois prefácios: João Lobo Antunes e Carlos Fiolhais.
Conheci pessoalmente João Lobo Antunes e convidei-o várias vezes para colóquios que promovi na Faculdade.
Sempre respondeu positivamente aos meus convites apresentando comunicações de grande valia. Carlos Fiolhais, físico renomado com uma vastíssima cultura geral, é alguém que, nos seus escritos e nas suas palestras, traz sempre algo de novo. Perante tudo isto, comprei o livro.
Para lá dos dois prefácios já referidos, e como se lê na “NOTA INTRODUTÓRIA. Porquê esta conversa?”, o “livro é composto por uma coleção de cartas que surgiram a partir de conversas entre os seus autores” (p. 25), ao todo treze, e uma “NOTA FINAL”.
Nas cartas os autores discutem a velha problemática da existência ou não existência de Deus, que “se prende com preocupações que sempre inquietaram o ser humano na sua tentativa de compreender o mundo e o seu lugar nele” (p. 23).
O facto de estarmos perante uma discussão sobre aquele tema protagonizada por dois doutorados em Física, isto é, autores treinados numa chamada ciência dura, sendo um deles padre jesuíta, portanto confessadamente crente e comprometido na atividade pastoral, e o outro declaradamente ateu, num tempo em que há manifestações de fundamentalismo ateu vividas comum fervor quase religioso, é um dos aliciantes para o leitor se lançar animadamente na leitura do livro.
Ao ler as cartas trocadas, assistimos, efetivamente, a um diálogo: cada carta mostra como o autor leu e compreendeu o que o outro disse, manifesta e justifica devidamente aquilo com que concorda ou discorda; explicita até onde é capaz de acompanhar o raciocínio dele e as razões porque não pode concordar com determinada conclusão.
Ao assistir a essa troca de argumentos, como diz João Lobo Antunes, no prefácio, o leitor sente-se impelido a participar também no diálogo e dizer das suas razões.
Ao ler as cartas, acompanhamos uma discussão entre pessoas inteligentes, cultíssimas, que se respeitam e apreciam, interessadas em entender-se; assiste-se uma caminhada de dois amigos na procura da Verdade, verificando que, no fim do livro, o Bruno Nobre continua crente e com mais razões para crer, e que Pedro Lind continua ateu e convencido das razões do seu ateísmo. Contudo, quando fechamos o livro, temos consciência de que a troca de argumentos não os deixou na mesma, tal como os leitores das cartas.
O ser humano, consciente ou inconscientemente, de um modo implícito ou explícito, confronta-se com as quatro famosas questões formuladas por Kant: «que posso saber?», «que devo fazer?», «que me é permitido esperar?», «o que é o homem?», esta última sintetizando as outras três.
Por mais distraídos que estejamos, por mais que Deus seja um não assunto no espaço público, a questão permanece: qual é o destino do ser humano?
 O livro que inspirou esta crónica é uma excelente companhia na procura da resposta, seja ela qual for.

José Henrique Silveira de Brito *

Share

Print

Theme picker