Diário dos Açores

Vai longa a vida e escrevo

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“Vai Longa a Vida”. É assim que se inaugura “Os Nós do Tempo”, de Vasco Pereira da Costa, apresentado há dias na Biblioteca Pública e Arquivo Regional de Ponta Delgada, no contexto do Arquipélago de Escritores.
 O autor celebra um percurso de 50 anos da melhor forma: renovando-o com um novo gesto literário, editado pela Palimage. Com um novo livro de poemas inaugurado com um poema chamado “A Maçã Verde”. A maçã verde que, depois vem a saber-se, pode ser a maçã verde de “O Filho do Homem”, o quadro de Magritte.
Entendo aqui a maçã verde como um recomeço. Não está ali uma maçã madura ou avelhentada. É uma maçã verde, colhida na árvore da vida. (Remete-me para um poema de “Campo”, Tarte de Maçã, que acaba assim: “inda está verde o poema/vou fazer tarte de maçã”).
O poeta, entre referências mitológicas, arrisca a sua intenção: “Busco a empolgante harmonia das palavras turbulentas/ que sobrevivem nas raias do silêncio”. E, nesse esforço, começa a ouvir o “murmúrio órfico dos versos animados e corajosos na folha de papel”.
Bruscamente o estranho passado reaparece “moldado em pretérito arrogante perfeito”, “ordenando palavras maliciosas num véu de bruma”.
Mas não é isso que o faz sucumbir.
Porque o poeta, que é como quem diz o escritor, tem uma arma poderosa: a de transfigurar o passado a seu jeito e de o arrumar num poema, purgado de todas as suas impurezas e perfídias.
E, depois de terminada essa tarefa de sacudir as maldades do tempo, pode dormir tranquilo.
O autor como guerreiro estóico que vence as agruras inventando a memória.
É essa a vingança da literatura.
O escritor, dado a vulnerabilidades, tinha de ter uma forma de se vingar.
Escrever é uma forma de ultrapassar o bullying persistente da vida, para, por um momento, trazer o poema ao dicionário dos dias, destes dias.
Escrever é uma forma de “desmentir o tempo e profanar a morte”.
Desafiar a morte escrevendo.
Escrevendo e amando.
Porque, como lembra em “Oikós”, o amor e a casa permitem a suspensão do tempo.
“Só as casas explicam que exista uma palavra como intimidade”, escreveu outro poeta, Ruy Belo. É nessa intimidade doméstica que o poeta se recria.
Outro tempo suspenso insinua-se nestes poemas. Um tempo suspenso que já não é fruto do gesto literário mas sim o tempo suspenso por uma pandemia que nos forçou ao confronto com os nossos enigmas.
Esse tempo também merece o confronto, o motim organizado por um verbo rebelde que celebra “aromas coloridos na primavera engenhosa” e “sóis fecundos no verão radiante”.
Porque tudo serve para celebrar a vida. Da mitologia grega aos salmos cristãos, passando pela vontade de não se submeter aos deuses e ao destino. A insubmissão é uma marca de Vasco Pereira da Costa.
“No passado que foi instante/ aos setenta sou o fui/ e assim continuo sendo em modo/ e em tempo gerundial”. Que entrada perfeita esta, com um travo pessoano.
Claro que este é um livro sobre a memória.  Não uma memória que paralisa e deprime. Uma memória que reaviva.
Os dias não têm nervo, as cidades estão a perder o viço e então o poeta recorta “os céus os mares as terras”.
E projecta-os na lembradiça.
Não será uma lembrança à Rui Knopfli, que obscurece irremediavelmente o presente onde, como diz num verso que dá título a uma colectânea recente da lírica do autor de “O País dos Outros”, “já nada tem encanto”.
Há encanto. Mas dá trabalho persegui-lo. E há pedras no meio do caminho, para trazer Carlos Drummond de Andrade.
Eis que chega o ciclo da pedra neste livro. Poemas sobre pedras, pedras que se amansam e iluminam, pedras que sangram poesia.
Pedras que são convocadas por referências maiores como Bob Dylan.
Pedras “onda a vida se prolonga e conclui”.
E há Angra.
Cidade-natal do poeta que lhe merece a melancolia que nos merece um paraíso perdido.
Hoje os versos naufragam e os peixes perderam as palavras e emerge ou a evocação de uma Angra mítica de “destroços, aventuras, fantasmas, feitiços” ou o chão da cidade da infância, recuperado com a candura com que se olha o mundo nos dias primeiros.
Vem à memória uma outra cidade.
Vasco senta-se num banco da Praça Velha, cerra os olhos e vê uma urbe de carros de praça, com choferes de praça, de lojas, engraxadores, músicos, contorcionistas.
E chega também, em conversa com o poeta brasileiro Manuel Bandeira, aquele que ensinou tantos a tratar a poesia por tu, a primeira namorada, ”graciosamente pequenita no seu vestidinho cinzento”, que morava na Rua de Jesus. E também, em conversa com o leitor, em modo de partilha entre dois, uma pessoa que imaginamos personagem, Dona Aurora de Abreu, com a sua píxide, de quando em quando exibida, a dar palco a um sátiro despudorado e a uma mulher despida, muito pudoradamente tapada com fita adesiva.
Sob o ponto de vista da forma, há, neste livro, uma rara qualidade. Uma oficina capaz de esculpir os melhores versos. Uma preocupação métrica, uma ocasional rima que nada força.
Ao tom guerreiro junta-se uma sombra sempre vigiada por uma prudente ironia.  
A vida vai longa mas há sempre a escrita.

Nuno Costa Santos *

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