Diário dos Açores

Linguagem, Verdade e Formação de Professores: Raiz de Sentido. Biobibliografia e Fundamentos (II)

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Há uma relação íntima entre Linguagem e Pensamento como demonstram, entre outras, as Obras de Grandes Filósofos da Linguagem e da Ontologia. Na nossa vida, na ciência, no conhecimento, na Educação, no ensino, etc, temos tantas experiências e vivências nas quais se fundam e fundamentam o que pensamos, dizemos e falamos e, que, depois, podem ser cientificadas, sem cientismos. Há aquilo a que o Professor José Enes chama a “verdade ante-predicativa” e a “verdade predicativa”. Em que consistem? Há dois erros extemos no ensino: um é fiarmo-nos, apenas, no que já sabemos antes (ante-predicativa) de estudar, de investigar, de ir para a escola, etc. O outro erro, igualmente extremo, e talvez mais grave, é só atendermos ao saber escolar, codificado e sistematizado. Um conhecimento que pode ficar petrificado sem a dinâmica do conhecer, do falar, do expressar, de escrever, etc.
Afirma o Professor José Enes: “A verdade da fala da reflexão fenomenológica reside neste mostrar da sugerênciaantepredicativa insinuada no dizer predicativo. É uma verdade apercebida: um ostrat apercebido do mostrar” (Enes, 1982, Estudos e Ensaios, p. 97). A Fenomenologia ensina ir “do vivido ao pensado”. Não só é uma expressão de conteúdo, mas também uma indicação metodológica e didática para todos os níveis de ensino, mas isto exige muito saber e perícia na transmissão, formulação e explicitação dos saberes e do conhecimento, até porque numa sala de aula há muitos alunos que são sujeitos de conhecimento e de aprendizagem, aprendizagens, linguagem e linguagens. Muito do insucesso escolar também passa por aqui. Mas temos alunos cada vez mais desinteressados e alheados, até porque não dão provas de atenção e de capacidade de superação de dificuldades e adversidades. Têm tudo, até porque a escolaridade é obrigatória até aos dezoito anos, o que estou de acordo, como princípio democrático, mas os discursos de gelatina desviam – ou evitam – a apologia do trabalho escolar, da disciplina, da dedicação, do esforço, da interiorização dos valores, da criatividade, etc. Muitas vezes em alguns setores de formação de professores há formadores que não dominam as áreas da especialidade em simultâneo com a Educação (ou ciências da educação).
Face à realidade que se vai vendo, por toda a parte, razão tem o Professor Machado Pires, de Saudosa Memória, quando afirma: “A aprendizagem de uma língua implica conhecimentos básicos que não podem ser iludidos. A “dulcificação” enganosa que certas correntes educativas têm inculcado nas Ciências da Educação tem sido responsável pelo menor grau de qualidade no uso da Língua Portuguesa. Tem-se minimizado o esforço, como se a natureza se amoldasse a teorias pedagógicas facilitistas. A memória é um instrumento precioso que deve ser aproveitado, nas idades em que pode e deve ser aproveitado, com bom senso e capacidade motivadora. O conhecimento “técnico” de uma língua exige a memorização de algumas informações.” (Machado Pires, 2005, in “Português para todos. A Gramática na Comunicação”., da autoria de Helena Montenegro).
O que afirma Machado Pires leva a verificar os efeitos nocivos da falta de uma Pedagogia Universitária – seja em que instituição for –que exige a articulação dinâmica entre ensino e investigação científica. A Investigação – mesmo ao nível da sala de aula- é a essência da Pedagogia Universitária que exige, simultaneamente,a capacidade e a arte de transmissão dos conhecimentos. Pode haver várias (des)sincronias temporais: exposição do conhecimento, investigação científica e problematização comunicacional dos conteúdos, de modo a que se desenvolva nos alunos – até de todos os níveis de ensino – atitudes, capacidades, conhecimentos, valores, competências. Têm sido feito nulidades à custa da retórica do ensino por competências sem que se procure saber o que é uma competência (leia-se, por exemplo, Olivier Reboul). E o curioso em todos os níveis de ensino, geralmente são os mais incompetentes que se escondem na retórica do ensino por competências, em exclusivo, discurso legitimado, durante décadas por muitas políticas educativas, que distorceram o sentido sério de sistema educativo e de ensino. Em Portugal foi o Professor Nuno Crato, primeiro como Professor Universitário, depois como Ministro,que veio revogar os documentos nacionais do ensino por competências, sempre chamando a atenção dos danos que resultavam do desinteresse pelos conteúdos, neste caso entendido os conteúdos como conhecimentos, isto porque uma pergunta, o perguntar, o questionar e a problematização são fundamentais no ensino e na investigação, bem como nos processos comunicacionais que são sempre ativos, incluindo os métodos expositivos. Só se expõe quem sabe. Tem havido uma fuga com efeitos de conhecimento inerte no uso e abuso dos “powerpoint”. Há pessoas que já não sabem expor uma ideia sem o apoio do “powerpoint”. Um dia falaremos no deslumbramento acrítico na defesa do uso dos manuais digitais. Somos seres corpóreos e devemos desenvolver os cinco sentidos.
O “powerpoint” não é a imagem de marca de um ensino que tente mobilizar os alunos, sem prejuízo da sua utilização moderada e crítica.  
Aliás, nas Universidades, só os bons professores apreendem e são capazes de concretizarempráticas pedagógicas e didáticas inerentesaos próprios processos de conhecimento. Também o Professor Gustavo de Fraga tinha não só, mastambém, um conhecimento filosófico excecional como tinha um domínio e um saber do que é a Pedagogia Universitária. Basta ler, em profundidade, o livro “Fidelidade e Alienação”. José Enes e Gustavo de Fragaforam sempre fiéis ao que é – e deve ser – uma Universidade como ajudaram a formar dos melhores alunos e professores que se foram formando ao longo de décadas e que ao longo do tempo têm exercido em várias instituições educativas. São patrimónios com plena atualidade e futuro. Os discípulos “diletos” têm, até, a obrigação moral e ética de estudarem, - e difundirem - de modo atual, atuante e atualizável as suas obras.
Neste ano de 2022 ocorre o Centenário do Nascimento do Professor Gustavo de Fraga, natural da Fajãzinha, na ilha das Flores. Veio para São Miguel, com menos de um ano de idade, ainda não falava com vocábulos. A primeira palavra que disse foi “Gaivota”, “vaivota”, como um dia me disse a sua Esposa, também de Saudosa Memória, a Professora Teresa Fraga. Veio viver, com os pais, para São Miguel, para Vila Franca do Campo.
Por mais que queira, - seja onde for - nenhum/a incompetente consegue silenciar – seja onde for, no Mundo - os discípulos “diletos” de um Grande Professor, mais, de Professores Geniais, que tanto dão – deram - de si às pessoas, às comunidades, às instituições. É o contrário que acontece, que deve acontecer, de modo louvável, a acolher e a aplaudir, outra coisa não é de esperar, naturalmente. É assim por todo o lado, em especial nas Democracias e nas instituições democráticas.
Veja-se o penúltimo Jornal de Letras os discípulos “diletos” do Professor Vitor Aguiar e Silva [VAS] (1939-2022) uma Figura que há muito estudo, a sua “Teoria da Literatura” (1967) e outros ensaios. Deixou-nos recentemente. O penúltimo Jornal de Letras (Ano XLII. Número 1356. De 21 de setembro a 4 de outubro de 2022) traz uma Justa evocação de VAS, desde logo do seu “dileto discípulo”, José Carlos Seabra Pereira, que o substituiu na Cátedra, na Universidade de Coimbra, quando o Mestre rumou à Cidade dos Arcebispos, para a Universidade de Coimbra.
O verdadeiro/a professor/a é um filósofo na medida, isto é, na proporção em que seja – ou for – é capaz de sistematizar na escola os saberes prévios, da “experiência vivida”, e problematizar os saberes codificados e questioná-los à luz das linguagens com que falamos, escrevemos e vemos o mundo. A nossa relação com o mundo é sempre uma relação pessoal e intransmissível, mas pode ser partilhada, de modo interpessoal, através da comunicação, do amor, da vontade sincera de querer fazer-se entender. Um manipulador do discurso nunca é um comunicador fiável, seja em que área for. O verdadeiro professor é sempre um comunicador e só uma pessoa de má fé e incompetente é que não percebe seja quem for implicita-se no que diz, fala e explica. É preciso revalorizar o verbo explicar, a explicação, que pode ser interativa ou expositiva. Só sabe fazer uma exposição quem é competente na matéria que ensina e domina os mecanismos de comunicação.
Quem expõe, expõe-se, fala de si, de um eu que tem experiências que são universalizáveis. Vergílio Ferreira, que foi escritor e professor, é um dos autores que mostra muito bem na sua obra, apoiando-se na Fenomenologia, que não há objetividade sem subjetividade, até na matemática. As verdades do conhecimentos passam pela experiência da cognição, do entendimento e da expressão. Quando, por exemplo, um professor pede que um aluno interprete o que está no texto e face à resposta diz, de modo arrogante e com ignorância atrevida: “Não é isto que está no texto”. Então se não é isto que está no texto porque pedem para interpretar. Interpretar é colocar-se entre, aí, o aluno-sujeito pode até dizer o que está no texto e ir além do texto porque ao interpretá-lo recria, até em novidade e originalidade. O que temos muitas vezes, em todos os níveis de ensino, são duas situações opostas: alunos melhores do que os professores e professores muito competentes que se vêem confrontados com a ignorância atrevida de quem tem, em primeirolugar, é a obrigação de estudar e conhecer para Saber. Os Professores profundamente competentes estão despertos para a interpretação objetiva e subjetiva, recriadora, pelos alunos. Na Universidade tive muito bons professores, alguns excelentes, dois deles geniais, foi o caso do Professor José Enes e do Professor Gustavo de Fraga. Estes dois – e muitos outros - eram Professores que sabiam reconhecer o valor dos alunos e incentivavam à participação, livre, mas na maior parte das vezes com base na análise e hermenêutica de obras de referência e de textos de vários autores e filósofos.
É assim a potência da Linguagem e as potências das linguagens de que Professor e alunos são portadores e trabalhadores. Direta e indiretamente, os Professores das disciplinas das especialidades, até porque alguns – poucos – eram sábios ligavam – ligam - de modo natural Conhecimento (conhecer), Ser, Pedagogia e Didática.  
Em próximos artigos darei exemplos e aprofundarei as temáticas, convocando diversos autores, professores, filósofos e escritores.

*Doutorado e Agregado em Educação e na Especialidade de Filosofia da Educação

Emanuel Oliveira Medeiros
Professor Universitário*

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