Diário dos Açores

O que é a Lusofonia - Parte 2 20 anos de colóquios de 2002 - 2022

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1. Genocídio Linguístico - Abr 2008
A maioria das línguas em risco de extinção não consta de dicionários ou gramáticas. Nettle e Romaine afirmam “metade das línguas faladas em todo o mundo pode desaparecer.” Para tornar mais explícito o elo entre a sobrevivência linguística e os assuntos ambientais, arguem (Daniell Nettle & Suzanne Romaine, Vanishing Voices: The Extinction of the World’slanguages Oxford University Press 2000): A extinção linguística faz parte do colapso dos ecossistemas mundiais. As batalhas para preservar os recursos ambientais, florestas tropicais, não podem nem devem separadas da luta para manter a diversidade cultural. A causa da morte das línguas assenta na interligação entre a ecologia e a politica. Existe um desconhecimento profundo sobre as línguas, desde o número e tamanho, aos nomes e locais. Metade desaparecerá até ao fim do séc. XXI, a cada quinzena, morre uma.

O ano de 2008 foi o Ano Internacional dos Idiomas pela ONU. A data passou despercebida porque a extinção das línguas não se sente como a inflação, a depressão económica, um tsunami ou sismo.. A longo prazo a tendência é a extinção. Não só as línguas morrem, com elas perde-se um conjunto de hábitos culturais ancestrais. É através da linguagem que se acede à cultura de um povo, ao modo de pensar e de vida, às tradições, ao seu saber.
A língua é uma catedral imponente, enorme esforço criativo, rica tapeçaria do conhecimento. A Capela Sistina ou Mona Lisa nunca desapareceriam sem guardar os traços dessas obras-primas. Em correspondência com David Crystal 1 este afirmava (2002)
“Espero que o desenvolvimento da língua portuguesa faça parte duma ética multilíngue nos países em que é falado a fim de que as línguas indígenas sejam respeitadas e apoiadas, o que no caso do Brasil é crítico dado o estado das línguas nativas.”
Na Austrália os colonizadores (séc. XIX) tentaram “civilizar” os aborígenes com valores ocidentais, escolas e vestuário, misturados com Cristianismo e Inglês. Isto foi criminosamente notório quando raptaram literalmente uma em cada dez crianças aborígenes para as forçarem a assimilar os valores da sociedade branca (Aboriginal Stolen Generation” peça “Stolen,” Companhia de Teatro Ilbijerri Aboriginal and Torres Strait Islander, 1992, representada no London’sTricycleTheatre, julho 4-15, 2000). De igual modo, nos EUA, os governos obliteraram da face da terra tribos de índios e forçaram as crianças nativas americanas a frequentarem escolas nas quais era proibido o uso de uma língua que não a inglesa.
A Austrália foi colonizada com gente de Inglaterra e 26 países.2 Quando os colonos arribaram (1788) havia 250 línguas aborígenes e 600 dialetos, sobrevivem 250. Tinham vocabulários complexos descrevendo os intrincados meandros da sociedade, com mais de dez mil étimos, terminologias específicas para cerimónias de iniciação ou para aqueles com quem o contacto devia ser evitado. Alguns casais falavam mais do que um idioma e identificavam-se pela geografia e língua. A tradição oral preservou formas verbais e não-verbais, incluindo danças, canções, pintura. Cada grupo linguístico era uma nação com fronteiras, cultura e regras.Em 2008, 10% da população aborígene australiana falava um dos remanescentes 250 dialetos. Destes, 160 desapareceram. Dos restantes 90 dialetos apenas 20 têm uso diário (in Dr. Annette Schmidt, 1990), os maiores grupos de idiomas sobreviventes têm entre 3-4 mil falantes. 15 mil pessoas falam Aboriginal Krill e Crioulo das Ilhas Torres. Dos que sobrevivem, metade tem entre dez e cem pessoas capazes de os articularem. (in Aboriginal Australian Encyclopedia, Canberra: Aboriginal Studies Press for the Australian Institute of Aboriginal and Torres Strait Islander Studies, 94.)  O campeão da extinção de línguas é o Brasil. Das 1 100 indígenas, 180 sobrevivem.

Literatura Açoriana (traduzida). Daniel de Sá, Abr. 2008
Neste universo tão idílico não busquei - ao traduzir - a essência do ser açoriano, que de certeza existe, em miríade de variações insulares, cada uma vincadamente segregada da outra. Nem apurei se o homem se adaptou às ilhas ou se estas se impõem condicionando a presença humana, para evidenciar a sua diferença, neste caso a açorianidade? Estando esta presente num escritor, explicá-lo é tarefa para estudos mais complexos do que a mera atividade de tradutor, por mais empenhado que possa estar pela sua tradução. Pedro da Silveira captou “as mundividências açorianas,” e na poesia “as inquietações e os sonhos de gente viva de todas as partilhas e um verdadeiro compromisso social.” Eu apenas captei uma fotografia da alma dos escritores que traduzi.” Podemos citar centenas de autores relevantes..Como recém-chegado tive o privilégio de aprender idiossincrasias micaelenses e picoenses quando, traduzi Daniel de Sá e Manuel Serpa. Deparei-me com noções etimologicamente novas contrastando com o uso ancestral que lhes apõem nos dicionários. Trata-se de desvendar as ilhas como mito paradisíaco recuando na essência até à infância dos autores, sem perder de vista que as ilhas reais já se abriram ao peso do presente e não podem ser apenas perpetuadas nas suas memórias. No plano da linguagem, Daniel de Sá (“O Pastor das Casa Mortas” 2007) dá-se ao luxo de exportar, por mimética, para uma das regiões mais interiores e montanhosas de Portugal, a Beira Alta, o herói em busca de um amor perdido no léxico e na sintaxe dos velhos montes escalavrados, por entre o pastoreio na verdadeira apologia da solidão física que é o retrato de Manuel Cordovão, lusitano de um amor só para toda a vida.
Como o autor diz trata-se de um livro dedicado “Às mulheres e aos homens que ainda acendem o lume nas últimas aldeias de Portugal.” A narrativa em terminologia não-insular é uma ode ao açoriano isolado, num amor perdido que se encontra quando Caronte ronda. Trata-se de uma visita não ao “despovoamento das ilhas” mas o país real, montanhoso, interior de Portugal. Aqui não se resgata o imaginário coletivo, no que tem de mais genuíno e identificador, antes se dá a palavra a uma erudição improvável de um apascentador de cabras. Nem há a memória plural, de Gaspar Frutuoso, mas sim a ficcionalização dum fenómeno que não se mimetiza apenas na digressão pela Beira Alta. As Casas Mortas são um resultado inelutável da vida do personagem principal, sem que a sátira ou o humor permeiem a couraça de convicções de Manuel Cordovão. Existe uma interdependência do autor, personagens e leitor que nos levou a ver e rever várias vezes, uma só passagem para lhe dar o tom, o colorido, a sonoridade e a poesia da prosa. Pensei que seria única, mas rapidamente me apercebi de que era recorrente à totalidade da obra. O resultado é rico, denso e tenso, a prosa enovelando em diálogos simples  um enredo que prende.
O outro livro intitulado “Santa Maria Ilha-Mãe” (2007) é uma viagem ao passado, permeada de nostalgia quase lírica, a magia da infância em cores simples mas nítidas. De como os Açores conviveram com o isolamento de séculos, a ameaça constante dos piratas, a inculcar vincadamente as crenças religiosas, na ilha que não foi muito assolada por terramotos nem explosões piroclásticas. Essa mundividência, leva-nos num interessante guia turístico.
O título gerou controvérsia, “Ilha-Mãe; Island Mother” ou como o autor notaria: “Não se trata de “mãe” com valor de adjetivo, mas sim de dois substantivos, tanto mais que os liguei com hífen. Como bem entendeu, uma ilha que é mãe também. Não é o caso de Ilha Verde, por exemplo.... Ainda hoje recordo exatamente o seu cheiro” e e sentimos os cheiros, as cores e as toadas que nos descreve.
“Embora vivesse numa ilha pequenina, a cinco minutos de um passeio calmo até ao aeroporto de quase todas as companhias aéreas que havia no Mundo, isso para o caso pouco importa!”
“A tradução, tal como a escrita, é uma arte e uma maestria, com um toque de alquimia. Quando o autor e o tradutor se reúnem, o resultado pode ser inspirador. As nuances traduzem a língua numa forma de arte. ”3 A minha tradução de Manuel Serpa “Da pedra se fez vinho / When rock became wine” foi exercício inesquecível com explicações à guisa de glossário, em profusas notas de tradutor. Para um leitor não-insular o texto seria incompreensível, era necessária a intertradução do falar picoense antes de vertido num inglês pouco shakespeariano.
David Crystal 4 salienta “a língua inglesa substituiu idiomas nativos como o Cambriano, Cornualhês, Norn e o galês Manx, embora esteja a ser substituída pela sua variante norte-americana.” Ao ler trabalhos na língua de Saramago , do colombiano García Marquéz, do egípcio Naguib Mahfouz (apenas 4 livros traduzidos para português) devemos ser sempre humildes em relação aos colegas tradutores, capazes de penetrarem as mais recônditas minudências das línguas de origem e transformarem-nas nas mesmas tonalidades na nossa língua. Foi o que tentei fazer ao descobrir a Açorianidade dos autores que traduzi e afirmo que a literatura açoriana está viva, de boa saúde e recomenda-se.
Cito um exemplo (1998) do jornal The Boston Globe, em que as vendas na Rússia de um ‘depilador’ tinham sido objeto de promoção como sendo um ‘tónico capilar’ para desespero de todos os recém-carecas. Outros exemplos abundam como o da água mineral “Blue Water” anunciada em Ucraniano como “bluvota” [vómito] ou o anúncio do champô “Wash and Go” que em Russo soa a ‘vosh’ ou piolho. Admitamos que traduções semelhantes são infelizmente correntes em material promocional do arquipélago.
Dei conta da extinção das línguas, que têm de ser mantidas, tratadas e estimadas. Elas não dividem países, a intolerância sim. Ignoramos a perda diária de línguas e nem sentimos a sua falta, outros acreditam que a pluriexistência é uma praga que assola a humanidade desde a Torre de Babel, em vez de ajudar a comunicar serve para confundir pela diversidade. Felizmente há muitos clamores alegando que a extinção das línguas é uma ameaça à espécie humana, e que, tal como a diversidade biológica é vital para a saúde da Terra, como as diversidades intelectuais e culturais. Isto é cada vez menos falacioso devido à globalização desenfreada. A sobrevivência dos idiomas depende de todos nós pelo que devemos aproveitar as novas tecnologias neste mundo de ondas hertzianas sem fronteiras onde a tirania dos governos não penetra. Usemos a Internet para proteger e recriar as línguas antes que se extingam. A tradução é essencial para reconhecer uma Nova Europa, e dezenas de línguas pondo-nos em contacto direto e instantâneo com culturas de vários países. Possam também descobrir a rica cultura açoriana.

 1correspondência em 2001 com o Professor David Crystal.
  2(Grécia, Itália, Escócia, Gales, Irlanda, Áustria, Canadá, Gibraltar, Holanda, Hungria, Índia, Madagáscar, Maurícias, Polónia, Rússia, Suécia, EUA; Índias Ocidentais, Cabo da Boa Esperança, Dinamarca, Egito, França, Alemanha, Pérsia, Portugal e Lituânia. (Records of the First Fleet, Jan. 26, 1788)
 3 Ann-Marie is a Toronto-based writer and actor.
  4(Cambridge Encyclopedia of the English Language, David Crystal Cambridge University Press ISBN 0521530334)

*Jornalista, Membro Honorário Vitalício nº 297713

Chrys Chrystello*

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