Diário dos Açores

A primeira forma de cosmopolitismo

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Agora que passam alguns dias do final do Arquipélago de Escritores, revisito-o como memória e como projecção do que ainda poderá ser.  Chega-me uma frase dita pelo escritor José Carlos Barros na entrevista que deu, perto da Igreja Matriz de Ponta Delgada, à jornalista Marta Silva, exímia na forma como conduziu o excelente programa da RTP Açores sobre as ocorrências do encontro. Valorizou muito o facto de ter sido convidado para um “evento que assenta em grande parte nessa ideia de uma tradição de literatura açoriana”. O sublinhar dessa tradição feito por um autor com histórico na área da criação literária e que venceu no ano passado o prémio Leya com o romance “As Pessoas Invisíveis”.
Um dos propósitos do encontro, dito não por nós, organizadores, mas por alguém que muito admiramos, nascido em  Boticas no ano de 1963, e que, tendo obra importante na poesia e na ficção, veio a Ponta Delgada para uma reunião informal com os leitores e os entrevistadores. O jornalista Rui Pedro Paiva, numa peça publicada no jornal Público,  seguiu o mesmo trilho: “Este é um dos méritos do Arquipélago de Escritores: associar a cultura ao território, redescobrir a literatura açoriana (o homenageado deste ano foi Vasco Pereira Costa) e motivar a discussão entre diferentes disciplinas”. É por aqui, sem inquietações de outros tempos, sem sombras e complexos. Literatura açoriana. Literatura dos Açores. Literatura que parte daqui (das nove ilhas ou das emigrações, incluindo a continental). A merecer um museu ou um centro de interpretação que consagre essa genealogia e renovados ventos, a pedir mais atenções – pelos dentro e por quem nos visita. Que melhor forma de conhecer este lugar e as suas extensões do que pelas suas melhores vozes literárias – tão abrangentes e diferentes, que vão de Martins Garcia a Maria Brandão? Tal como acontece noutros sítios insulares. Como a Islândia. A propósito: acaba de ser inaugurada uma exposição em Ponta Delgada, no espaço cultural Vaga, “Códigos Comuns”, que consagra um diálogo entre os Açores e a Islândia, território periférico como o nosso. Os artistas islandeses convidados partilharam as primeiras impressões “Há muitas semelhanças entre a Islândia e os Açores – do vulcanismo às praias de areia preta”. As diferenças culturais são várias e vão além da temperatura. E, como foi notado, só enriquecem o diálogo. Eles não falaram do assunto mas sublinho-o: a Islândia tem níveis de literacia muito superiores aos Açores e Reykjavik é uma cidade literária da UNESCO. Um exemplo até por aí.
Escrevo a crónica num recanto da Biblioteca Pública e Arquivo Regional Luís da Silva Ribeiro. Levanto-me e, à saída, volto a visitar a exposição sobre Pedro da Silveira. Encontro uma sentença: “A nossa filosofia foi sintonizarmos a ‘nossa’ literatura com os Açores sem esquecermos uma participante cidadania do mundo”. Uma filosofia que conhecia mas que nunca havia lido formulada deste modo. Rima mais ou menos inesperada para o momento.
Valorizar os de casa, gesto cada vez mais invulgar em tempos de deslumbres imediatos, e receber num chão de tradição literária escritas de várias partes. Conexões com os outros, sim, sem esquecer um dado essencial, muitas vezes esquecido. Uma das primeiras formas de cosmopolitismo é valorizar o que de melhor se tem.

 

Nuno Costa Santos *

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