Diário dos Açores

O Catar e a dimensão certa dos Direitos Humanos

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Antes do mais, o desejo de boa sorte e votos de muito sucesso à equipa de Portugal no Campeonato do Mundo de Futebol.
Para erguer e acompanhar este Campeonato, trabalhadores migrantes às centenas de milhar, 95% da mão de obra do Catar, foram e continuam a ser desumanamente explorados ou até escravizados. Isto num país onde a flagelação e o apedrejamento constituem punições legais, tal como a sodomia, para homossexuais, e a pena de morte, para o adultério.
Mas, em lugar de dividir, o desporto deve e pode ser veículo de união entre povos e países e, face à decisão da FIFA (apesar de discutível) estar tomada desde 2010 sem grandes contestações, este sentimento universal seria talvez mais que suficiente para admitir a eventual deslocação ao Catar de representantes nacionais dos países concorrentes, em apoio às suas equipas.
Só que, no caso português, a embrulhada foi grande.
O Presidente da República justificou-se dizendo que de momento eram para esquecer os atentados aos direitos humanos no Catar. Depois, face às críticas, disse que lá falaria desses direitos, o que até fez, mas de forma claramente embrulhada e pouco convicta. O Presidente da Assembleia da República foi ao Catar e, para lá da motivação patriótica, justificou-se com espantosa franqueza (veja-se a escravidão dos migrantes em Portugal) que “quase todos os países têm derrotas no cumprimento dos direitos humanos”, permitindo deduzir daí que não têm moral para se armar em juízes e condenar os outros. Afirmou ainda que até tínhamos e continuaríamos a ter boas relações com o Catar. Admira-me é que, por causa dos mesmos(?) direitos humanos, enquanto ministro dos negócios estrangeiros, juntamente com todo o seu governo, não reconheceu as eleições na Venezuela e legitimou um presidente fantoche autoproclamado, Juan Guaidó, que ninguém sabe ao serviço de que “direitos humanos” estava. Neste caso já o patriotismo não serviu para justificar a continuação do bom relacionamento diplomático com outro país, valendo de bem pouco o facto de lá existirem 400.000 emigrantes e um milhão e duzentos mil luso-descendentes. Se como parece é apenas o jogo da bola que importa, então pelo menos deveríamos ter em maior conta uma nação onde seguramente muito mais portugueses jogam à bola do que no Catar…
Mas o mundo não está melhor. Estados Unidos, Austrália, Reino Unido e Canadá anunciaram o boicote diplomático aos jogos olímpicos de inverno deste ano na República Popular da China, invocando, em nome de uma suposta Comunidade Internacional, os atentados aos direitos humanos naquele país. Ficaram, entretanto, conformados e de consciência tranquila com o Catar. Recorde-se que a Carta dos Direitos do Homem é da responsabilidade da ONU e é a esta organização que é universalmente reconhecido o direito de ajuizar sobre o seu cumprimento em qualquer zona do globo. Além disso, essa Carta pressupõe no seu preâmbulo ser “necessário encorajar o desenvolvimento de relações amistosas entre nações”. Ora não foi certamente o boicote diplomático daqueles quatro países a melhor forma de prosseguir tal objetivo.
Por outro lado, incentivando a discriminação desportiva, a FIFA, que fechou os olhosao Catar, logo se apressou após a invasão russa à Ucrânia a afastar as seleções e clubes russos das provas de futebol por si organizadas...
Está mesmo difícil de encontrar a dimensão certa dos direitos humanos…

Mário Abrantes *

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