Diário dos Açores

Parem de escavar!!

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Primeiro achei que era uma daquelas ideias tontas que saem da cabeça, vezes de mais, dos responsáveis políticos. Depois passei para a fase do ridículo. E, após ler as ditas, considero que se trata de um atentado à democracia e ao próprio Estado de Direito. Refiro-me, como já devem ter percebido, ao questionário inventado pelo Primeiro-Ministro como (alegada) resposta à sucessão de casos envolvendo ministros, secretários de estados, assessores e afins. Para quem, como eu, segue com interesse tudo o que envolve a política, é ainda mais triste e revoltante ao ponto que isto chegou. Por isso é que considero estarmos na presença de um atentando à democracia. A democracia, independentemente da qualidade dos seus protagonistas, não pode pactuar com o espírito insidioso que subjaz naquele fatídico questionário.
Quem se sujeitar àquilo está a ser cúmplice de um pulismo atroz. O nobre exercício de um cargo público-partidário pressupõe, pelo menos para mim, um juízo prévio de quem convida e de quem é convidado. O titular de um cargo público está sujeito, e bem, ao escrutínio público (jornalístico e político) e ao cumprimento dos deveres e obrigações previstas na lei. Existem entidades com competência para fiscalizar as declarações e demais informações prestadas pelos políticos. Até foi criada, em 2019 e que só agora parece que vai começar a funcionar, uma coisa chamada “Entidade para a Transparência”.  O questionário, por muito que se diga que é mais um instrumento que serve para isso mesmo, não nasceu, nem tem esse objetivo. O questionário não visa pugnar pela transparência. O questionário – pasme-se! – está sujeito ao regime de segredo de Estado! O questionário é, por um lado, uma desculpa, um expediente, para a exclusão da responsabilidade de quem convida e, por outro, uma espada sobre a cabeça do convidado e sua família. E é aqui que entra a segunda parte, e a mais grave, do atentado. O questionário promove ajudicialização da política. O questionário está pejado de inconstitucionalidades… se Portugal fosse um verdadeiro Estado de Direito. O questionário viola o segredo de justiça. O questionário chuta para canto a confidencialidade fiscal e contributiva. O questionário invade, grosseiramente, matéria do foro da intimidade privada.
Ora, nenhum Estado de Direito devia, sequer, tolerar a flagrante violação ali presente da separação de poderes. Nenhum Estado de Direito devia aceitar a inversão da presunção de inocência ali presente, ainda para mais quando alargada a familiares. O questionário, como brilhantemente escreveu o Professor Bacelar Gouveia, parte da seguinte premissa: “as pessoas a escolher presumem-se inidóneas até resposta em contrário”.Isto é a falência de um regime. A democracia não pode continuar no buraco onde se encontra. Por favor, parem de escavar!!

Hernani Bettencourt*
*Jurista

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