Diário dos Açores

Uma vida inspirada no alfabeto da dignidade humana

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Opinião

1 –  (b)ecos ocultos na “via-sacra” do ilhéu açoriano  

Comecei a ter conversas esporádicas com o escritor Dias de Melo, quando já ia na recta final da minha adolescência. Em fins da década de 50, já como tralhador-estudante, tive a grata experiência de conviver com vários ilhéus oriundos do ocidente açoriano e de apreciar o ritmo pausado da sua conversação: naquele tempo, consolava-me a escutar os comentários pertinentes e divertidos que alguns deles urdiam ao servilismo social tão em voga na sociedade micaelense. Repito: consolava-me a ouvi-los, porque na altura ainda não tinha ossatura psico-cultural bastante para os imitar ao ar livre...
Não foi preciso muito tempo para reconhecer que o cosmopolitismo hortense, a brejeirice terceirense e a valentia picoense eram por mim sentidos como desafios que desafiavam o “quietismo” da ruralidade insular, sugerindo notícias aliciantes duma convivialidade social supostamente menos vigiada do que aquela tradicionalmente imposta pelos regedores feudais da grei micaelense.
O escritor Dias de Melo surgiu na pacatez da minha adolescência como uma espécie de “tio adoptivo” (não me fora dado conhecer o nosso tio Carlos, por ter sido fatalmente “castigado” pela repressão fascista, quatro anos antes do meu nascimento). Aconteceu que o escritor, na época professor do Ciclo Preparatório do Ensino Técnico, cedo descobriu a minha destreza de dactilógrafo, como jovem escriturário da secretaria da Escola Industrial e Comercial de Ponta Delgada.
Depois de previamente autorizado pelo nosso Director, Dr. Aníbal Cymbron Barbosa, era frequentemente incumbido de  “passar à máquina” notas didácticas e “propostas” de exame da autoria de alguns agentes de ensino. Entrementes, nunca disfarcei a alegria de dactilografar muitas páginas avulsas da autoria de Dias de Melo, com a vantagem pessoal de observar e reflectir os múltiplos retoques registados nas peregrinas folhas que me eram confiadas, sem no entanto conhecer de que novela ou conto se tratava...
Recordo que após o final do mandato de Craveiro Lopes (1958), as nossas conversas começaram a mudar, gradualmente, de partitura temática. Nessa altura, já tinha coragem para lhe mostrar alguns dos versos inspirados na minha “iniciação” anteriana.
Alguns anos mais tarde, por alturas da retomada de Goa pela União Indiana, o professor Dias de Melo resolveu apostar no relacionamento fraternal: as nossas conversas junto à oficina de serralharia do saudoso mestre Leonel começaram a ser prudentemente codificadas. Nessa altura, a minha timidez ideológica estava bem protegida com passaporte clandestino, junto à fronteira da “prudência”...  
Mais tarde, aquando do forçado cruzeiro colonial (1963-1966), foi-me dado reconhecer o seu cuidado fraternal em não “magoar” o meu acrisolado romantismo anteriano. Nos raros mas genuínos “bilhetes” que dele recebia em Moçambique, não esqueço a habitual sugestão para diversificar as minhas leituras: Ferreira de Castro, Aquilino Ribeiro, Miguel Torga, ou alguma versão brasileira de “As Vinhas da Ira”, de John Steinbeck...

2 – a obra de Dias de Melo: grito dos oprimidos no julgamento da Desigualdade

Imagino que alguns já notaram que ainda não fiz uma referência à obra literária de Dias de Melo. Há certamente razões que explicam a minha prudência: a circunstância de integrar o vasto número dos leitores da sua obra não me outorga a credibilidade bastante para me arvorar em crítico literário.
Diria que quem lhe conhece a obra, adivinha-lhe o carácter. Sinto-me preparado para conversar do “tecido humano” de quem foi valoroso ilhéu do mundo. Ainda na alvorada da nossa convivência, percebi que Dias de Melo não admitia ladainhas justificativas para as falhas de consistência cívico-política. Diria que a boa memória  é o cofre inexpugnável dos nossos anseios ideológicos; de resto, a camaradagem tem exigências que a confidencialidade serena cultiva e guarda ab intestato...
Mas há episódios que são do domínio público. Alguns dias após o 25 de Abril, acompanhei Dias de Melo (e cerca de duas dúzias de democratas) num “passeio” emocional ao longo da muralha da doca, para lançar ao mar a placa de bronze “Molhe Salazar”, que durante décadas existira despercebida no topo do paredão da doca. Na altura reparei que Dias de Melo caminhou o percurso em silêncio. No final do “passeio emocional” comentou com avisada ironia: “é preciso evitar que esta placa volte a ser um dia endeusada pelos bisnetos dos fascistas...”
Um outro episódio que não gostaria de esquecer aconteceu cerca de um mês após a revolução dos cravos. Tínhamos combinado o nosso encontro nas imediações da Escola Secundária Roberto Ivens, para não falhar presença à primeira reunião de democratas simpatizantes do Partido Socialista. Como é do conhecimento público, já nesse tempo Dias de Melo gozava de reputação firmada como veterano anti-fascista.
Antes de avançarmos para a sala onde iria “nascer” o grupo fundador da primeira secção micaelense do Partido Socialista, Dias de Melo teve para comigo um gesto de genuína colegialidade anti-fascista. Falou-me como se eu fosse um júnior embarcadiço em véspera do primeiro encontro com baleias: - Atina! Não abras a boca antes de saberes quem são esses gajos...  
Alguns anos mais tarde, já como emigrante na Nova Inglaterra, tive a alegria singular da sua visita em nossa casa. A generosidade humana de Dias de Melo tinha o sabor altruísta da autenticidade: sempre, sempre mais preocupado com a fidelidade aos princípios do que cativado pela pomposidade dos mordomos da perfeição.  
Numa das suas cartas, escrita em 31 de Janeiro de 1987, dava-me notícias do seu trabalho “Uma Estrela nas Mãos do Homem”, tecendo ainda considerações magoadas acerca do “oportunismo” e da amoralidade “calculista” dos manipuladores do talento alheio. Mais adiante, em gesto de tocante fraternidade, escrevia: 
“... tenho lido as tuas crónicas... continuas a ser quem sempre foste. Fiel a ti mesmo. Não é fácil...”   
Noutra carta escrita em Dezembro de 1998, depois de recordar as sinuosidades tácticas impostas (alguns anos antes) pela política de televisão regional, o escritor enaltecia a  sinceridade artística de Zeca Medeiros, entusiasta duma versão televisionada de “Pedras Negras”...  Na mesma carta, depois de felicitar a minha opção pelo Oeste Americano, entendeu confessar o seu apego pela Califórnia que considerava “...ainda o recanto do mundo em que mais gostei de estar e gostaria de viver.”
Numa outra missiva datada de 25 de Maio de 2005, o escritor oferece-me a notícia de que, embora ainda mal refeito de recentes problemas de saúde, já começara a escrever a última etapa de “Poeira do Caminho”, com temas alusivos ao pós-25 de Abril. Depois adianta alguns pormenores do seu plano, designadamente: “... para o Melo Antunes tenho que guardar um lugar cimeiro a nível nacional e à parte de qualquer partido. E a nível regional e dentro do PS, outro para... ti. Claro: isto não é uma obra de memórias politicas...”
Falta ainda dizer que tive o cuidado de transcrever acima alguns “episódios epistolográficos” da autoria de José Dias de Melo, valoroso e saudoso Amigo. Em meados de Julho de 2008, quando o “mau-olhado” da morte já espreitava o timão fragilizado da sua existência, tive a ventura de passar algumas tardes junto ao seu leito de enfermo, a escutar estórias antigas e recentes, no tom arrastado da sua voz cada vez mais sumida no “mau tempo no canal”.  
... nos momentos finais do meu derradeiro contacto com uma vida inspirada no alfabeto da dignidade humana, combinámos tingir o crepe nostálgico da ocasião com uma simples pincelada verbal: “até logo!...”

João Luís de Medeiros *
* Texto escrito à revelia do recente acordo ortográfico

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