Diário dos Açores

Museu do Pico acolhe obras de Chrys Chrystello (Parte 1)

Previous Article Previous Article População sente-se menos satisfeita com a situação financeira do que com a vida em geral
Next Article Alexandre Gaudêncio enaltece trabalho do Gabinete SOS Mulher da Ribeira Grande Alexandre Gaudêncio enaltece trabalho do Gabinete SOS Mulher da Ribeira Grande

Pico, museu dos baleeiros 5 abril 2023 Apresentação 50 anos de vida literária
Peço desculpa mas com as minhas atuais limitações de fala optei por mostrar as imagens que acabam de ver. Resta-me acrescentar que os seis volumes da Crónica do Quotidiano Inútil almejam ser amostra das Obras Completas de poesia e da inquietude que me persegue desde que deixei a Europa em 1973 e me abri ao conhecimento universal e multicultural.
Após  2006  traduzi, entre outras, obras de autores açorianos para Inglês, nomeadamente Daniel de Sá (Santa Maria ilha-mãe, O Pastor das Casas Mortas, São Miguel: A Ilha esculpida e a Ilha Terceira Terra de Bravos ), de Manuel Serpa (e das pedras se fez vinho), Victor Rui Dores” (Ilhas do Triângulo, coração dos Açores numa viagem com Jacques Brel ) e outros autores da Antologia Bilingue de Autores Açorianos como Álamo Oliveira, Caetano Valadão Serpa, Eduardo Bettencourt Pinto, Eduíno de Jesus, Emanuel de Sousa, Emanuel Félix, Fernando Aires, Marcolino Candeias, Mª de Fátima Borges,  Martins Garcia, Onésimo Teotónio de Almeida,  Urbano Bettencourt, Vasco Pereira da Costa.
Perguntaram-me depois de saberem que vim da Austrália, como se pode optar por ficar nestas ilhas e descurar o que existe para lá deste arquipélago? Simples,  pois aqui uma pessoa fica ilhanizada como Almeida Firmino em “A Narcose”. Bastou descer à Praia da Viola na Lomba da Maia onde vivo, subir ao Monte Escuro e aos sempiternos verdes montes de São Miguel, ver as vacas alpinistas e o mar que nos rodeia para entender a açorianidade que nos leva a escrever. Depois, fui viajar entre estas nove filhas de Zeus para entender os maroiços do Pico ao sabor do seu Verdelho, descer ao Algar do Carvão na Terceira, calcorrear o mariense Barreiro da Faneca, banhar-me por entre as areias esbranquiçadas de Porto Pim no Faial depois de um gin no Peter’s, ouvir 1001 pianos na graciosa ilha branca da Furna do Enxofre, meditar nas 72 fajãs de São Jorge em frente ao ilhéu do Topo, embasbacar com as cascatas das Flores e as aterragens da SATA na ilha do Corvo.
Quando cheguei desconhecia quase tudo sobre as ilhas, mas descobri no Dicionário do Morais os termos “chamados” açorianos, do vernáculo ancestral muitas vezes em desuso no continente. Foi essencial partir à descoberta de cada ilha, sentindo com Dias de Melo as agruras e fome dos baleeiros com Mau Tempo no Canal, parar num qualquer aeroporto e entender o Passageiro em Trânsito do Cristóvão de Aguiar, ler em voz alta a poesia do Fogo Oculto de Vasco Pereira da Costa, Viajar com as Sombras ou com o Tango nos Pátios do Sul de Eduardo Bettencourt Pinto, depois de revisitar as pedras arruinadas do Pastor das Casas Mortas de Daniel de Sá. Escolhi estes mas há muitos outros que não só merecem ser lidos, como deveriam constar de qualquer currículo de ensino.
Toda a minha vida foi uma circum-navegação. Se nos anos 70 designei para pátria a Austrália nunca deixei de conjugar a de Fernando Pessoa, a língua portuguesa. Hoje, tenho como mátria Bragança, mas aos açorianos o devo pois foram eles que me ensinaram o amor às raízes. Ao vê-los tão amantes das suas terras tive de redescobrir as minhas origens em Bragança. Sinto como todos transportam esse sentimento de pertença aqui e no estrangeiro. Mas é aqui no Pico onde sinto o sortilégio da ilha. O mágico cume tem um íman que atrai e nos desconcentra, insistindo para o contemplarmos nas suas milhentas facetas, alteradas a cada segundo, quer estejamos em São Jorge, na Terceira, na Graciosa ou no Faial.
Éuma honra fazer mais uma apresentação aqui na Vila que foi a primeira da ilha, feita de gente que ao longo dos séculos sempre soube arcar com todas as dificuldades, domar a lava com ferros e marrões, tarefa hercúlea que as gentes do Pico empreenderam ao longo de cinco séculos de colonização da agreste ilha, sem esquecer a luta titânica que nos seus pequenos botes travaram contra a baleia. Mas é essa mesma gente que sempre denotou um invulgar caráter e inventividade. Atualmente, é proibido por força de lei, anunciar nas viaturas particulares que estão à venda. Pois bem, nesta ilha, inventaram uma nova modalidade comercial “Troco Por Euros”. Não infringem a lei pois não vendem a viatura nem anunciam a venda. Apenas a trocam por euros. A troca não é proibida.
A terminar evoco uma memória marcante de 2009 quando ao chegar a casa do Cristóvão de Aguiar parei no café Refúgio, em pleno centro de São Miguel Arcanjo, onde me ofereceram graciosamente o café por ser o último que ali tomava. Andados uns passos deparei com uma camioneta estacionada aguardando o começo da semana para voltar a trabalhar. Acorreu-me a ideia peregrina de como seria a aventura peregrina de “pedir emprestada” a carripana, começar a percorrer as aldeias (ditas freguesias) e gravar as histórias que os passageiros fossem contando. A viagem não teria destino. Duraria tanto quanto as histórias. Não seriam cobrados bilhetes. Pararia em todos os locais, para que fossem contadas as histórias e lendas do local onde paravam. Que livro maravilhoso não daria esse compêndio de histórias apanhadas ao acaso daqueles que tomassem o autocarro dos sonhos.
Esta é também a magia da vossa ilha que se insinua como uma amante insaciada, mulher fatal capaz de marcar os destinos de todos os homens que têm a sorte de a encontrar. Bem hajam pela vossa paciência para me ouvirem.
Chrys Chrystello
Carla Maria Pereira Pimentel Silva
Apresentação de “Crónica do Quotidiano Inútil – 50 anos de Vida Literária” de Chrys Chrystello
5 de abril de 2023 Museu do Pico, Açores

Estão de olhos postos em mim, mas não deviam. Os olhares deveriam todos recair sobre um poeta/narrador rebelde, incomodado, corajosamente irrequieto que durante 50 anos, também eles de poesia, enfrentou a irregularidade do quotidiano. Sairia eu do brasão da nossa história açoriana, tal açor engalanado, e sobrevoaria este maravilhoso mar vermelho e negro de nome “Crónica do Quotidiano Inútil – 50 anos de vida literária”. Senti-me predadora de palavras, perdida num jogo de espelhos iconicamente deturpados por uma análise crítica, tenaz e muito afinada, tal viola da terra em noite de chamarrita na eira. Perdoem-me a ousadia, mas esta afronta que o nosso povo foi sempre capaz de fazer através da viola e das palavras equipara-se à deste poeta.
Trago-lhe uma surpresa, Chrys Chrystello, uma viola da terra nas mãos de um cantador de chamarrita picaroto e acompanhado no despique por outro, por um segundo. Paulo Rogério Goulart na voz e Orlando Martins, na voz e no som trinado da viola da terra, a dos 2 corações.

CHAMARRITA CANTADA
Vou repescar, da minha introdução, o vocábulo icónico que, derivando do latim “iconicus”, apresenta o sentido de algo feito naturalmente; que tem semelhança com o que representa, que simboliza uma época, uma cultura, uma área do conhecimento. Eu diria mais refere-se a alguém que se destaca ou se distingue em relação aos demais, conferindo-lhe um comportamento, esse sim, icônico. São 6 volumes condensados num único grito que, tomando as palavras de Sérgio Augusto Vieira no prefácio do volume I datado de maio de 1972, diz:
“Só podemos chegar ao mundo do poeta pelo abandono temporário de nossos hábitos de pensamento ou de nossas funções pensadas(…). Em relação ao jovem poeta José Chrystello, desejamos que o não vejam com a rudeza e a intranscendência dos conceitos e das deformações do pensamento crítico, mas que o olhem como que mergulhados no seu mundo, no momento de suas vivências. Só desse modo devem ser vistos os artistas.”
Há aqui um aconselhamento ao leitor que data de 1972, como já referi, mas atualíssimo, alta costura, 2023/24, meus senhores. – Repito: Só desse modo devem ser vistos os artistas.
Primeiramente avagarei na palavra icónico e agora permitam-me voltar às cores, à capa e contra-capa – vermelho, preto e branco e uma imagem; na capa, um perfil com mão de escrita que intercala o número 50 – tanto poderia ser dito da simbologia destas cores e deste número, mas tão diretamente como o narrador desta obra “ eu quero que tudo isto seja significado de libertação e grito de revolta à subordinação dos povos e de um eu lírico”.
Na contra-capa há um círculo que nos inflama a curiosidade; é o autor a impor a sua verdade – vigiarás, mas mediante as minhas formas e propostas; se fores astuto sobreviverás. Temos que nos despir do nosso quotidiano inútil e embarcar, através desta estrutura circular, numa jornada sem fim, com retornos memoráveis – aos seus países, às suas cidades, às suas ilhas, aos seus lugares, aos seus amores e desamores, à suas guerras, à sua paz.
Ao longo destes 6 volumes há uma denúncia de um quotidiano mísero, de um Deus não protetor, de uma sociedade em coma como podemos verificar no poema seguinte que encontrei no volume 6

*Continua
 

Chrys Chrystello*

*Jornalista, Membro Honorário Vitalício nº 297713

Share

Print

Theme picker