“A democracia é a tentativa de regular  as vontades do poder”
Diário dos Açores

“A democracia é a tentativa de regular as vontades do poder”

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Onésimo Almeida, professor, escritor e ensaísta

A palavra “poder” apresenta muitas vezes uma conotação negativa. Essa associação tem que ver com o mau uso que fazemos do próprio poder?
O poder tem muitos sentidos. Refere-se ao poder do Estado? Ao poder dos pais sobre os filhos? Ao poder na relação de um casal?
É natural os seres humanos exercerem poder sobre os circunstantes. 
Quando me sento num avião e chega outra pessoa que reclama o meu lugar, eu exibo o meu cartão de embarque. 
O meu direito ao lugar dá-me poder sobre ele. Isto para dizer que as relações humanas são frequentemente interrelações de poderes. 
O mais significativo (pelo menos para mim) contributo de Michel Foucault para o pensamento ocidental foi ter feito notar que Nietzsche tinha percebido melhor do que Marx que os interesses económicos fazem parte de um todo que é o natural desejo de os seres humanos se afirmarem e, por consequência, mesmo sem terem disso consciência, exercerem poder sobre quem os rodeia. 
Diferentemente do que Marx sugere, em regra, as pessoas não querem dinheiro apenas para terem dinheiro, mas para terem poder de compra ou de aquisição do que quer que seja que lhes interessa. 
Claro que nem todas as ações humanas se podem reduzir a formas de poder e, além disso, esse termo “poder” tem uma multiplicidade de “nuances” semânticas que cobrem uma vasta gama de ações humanas. 
De qualquer modo, a democracia é basicamente a tentativa de regular e harmonizar todas essas “vontades de poder”. 
O contributo de Foucault foi chamar a atenção para a perspicaz perceção de Niezscheacerca do comportamento humano que escapou a Marx.

“O poder tende a corromper, e o poder absoluto corrompe absolutamente, de modo que os grandes homens são quase sempre homens maus”, disse LordActon no final do século XIX. O poder corrói quase sempre?
Pode corromper e tem corrompido. 
Não significa que se deva – ou sequer se possa – aboli-lo. 
Um árbitro tem um imenso poder num jogo de futebol. Pode errar sem intenção. Mas é necessária a sua presença no campo. O poder é necessário para o funcionamento das estruturas porque a alternativa seria a anarquia. 
Mas tem de ser regulado e vigiado. É por isso que os patriarcas da ideia do Estado moderno criaram os três poderes que se vigiam reciprocamente. 
Como na antiga história do polvo, da lagosta e da moreia que coexistem pacificamente num tanque porque: a lagosta tem medo do polvo pois ele amarra-lhe facilmente as pernas; o polvo tem medo da moreia porque ela escorrega-se-lhe entre os tentáculos; a moreia tem medo da lagosta porque ela crava-se-lhe no corpo.

É preciso também aprender a ter poder? É algo que se ensina?
Ensina-se. Mas sobretudo aprende-se na prática. E, acima de tudo, vigia-se, isto é, deve ser vigiado.
 
E qual o poder das palavras: têm hoje mais ou menos força?
Por um lado, as palavras têm hoje mais poder porque vão mais longe graças aos meios de comunicação disponíveis que as multiplicam e fazem chegar em segundos a todo o lado. 
Mas, por outro, a acessibilidade atual dos mesmos meios de comunicação permite que qualquer pessoa se sirva deles para espalhar a sua palavra. 
O que resulta é uma delirante cacofonia de palavreado que só não é ensurdecedora porque acontece sobretudo no espaço cibernético, barulhento apenas em sentido figurado. 
O poder das palavras fica assim muito reduzido porque coexiste constantemente em confronto com o poder da palavra dos outros. 
No silêncio de um quarto em sua casa, um cidadão está a digladiar-se aguerridamente com as palavras silenciosamente chegadas de outras partes do globo em jeito de autêntica guerra em surdina. 
Por se tratar de um processo psicologicamnete cansativo, uma grande parte dos intervenientes desiste da luta e defende-se procurando conversar com um grupo seletivo de parceiros, muitos deles apenas de conhecimento virtual. 
É mais fácil e imensamente mais agradável interagir com pessoas com quem estamos de acordo e, assim, a internet permite que as pessoas criem grupos de conversação que lhes permitam estar em família num espaço mais alargado que o do café, ou dos convívios em casa de amigos. Sendo a internet um “meio frio” (o termo é de Marshall McLuhan a propósito de “media” como a televisão), a palavra tem menos força porque é recebida sem o envolvimento emocional de uma presença ao vivo. Falta-lhe a carga emotiva da palavra ouvida na presença do transmissor. Mas isso sempre foi assim com os livros, que também são um meio frio (se bem que McLuhan não os tivesse referido, tanto quanto me recordo). 
Mas, voltando à sua questão: não creio que as palavras tenham perdido o seu poder.
 Exceto na medida em que se multiplicaram exponencialmente e, por isso, em grande parte se anulam mutuamente na confusão da ágora, a praça pública grega, agora não mais uma praça mas o globo inteiro. 

Nessa “confusão da ágora”, saber ainda é poder? 
Foi sempre, é, e continuará a sê-lo. Muito embora só em 1622 a frase tenha sido cunhada pelo inglês Francis Bacon (o que ele de facto disse foi “saber e poder são sinónimos”, mas digamos que as duas frases são sinónimas), foi sempre assim desde que o mundo é mundo – por mais que nos venham falar de grupos humanos na pré-história vivendo em comunidades igualitárias. 

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