Diário dos Açores

O 25 de Abril 49 anos depois

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1. Soletras Autonomia (Lomba da Maia, ABR 2013)

ilhas de névoas e gaze
de novelões e conteiras
do verde e do azul 
ó gente de negro basalto
quem canta a tua gesta?
terra de maroiços
cais de rola-pipas
mar imenso abraseado
lacerado por vulcões
ilhas de bardos e músicos
               republicanos presidentes 
poetas, pintores e artistas
    antero, nemésio e natália
quem te liberta das grilhetas
          do passado feudal
          da escravatura da fé
          do atavismo ancestral?
soletras autonomia
gaguejas liberdade
titubeias emancipação
com laivos de insubmissão
como a irmã galiza
cicias um 25 de abril
que tarda em chegar
(In Crónica do Quotidiano Inútil, vols 1 a 6, 50 anos de vida literária, ed. Letras Lavadas)

2. A atual geração não passou por nada em termos de privações familiares comparado com a geração de “baby boomers” a que pertenço, nascida no pós-guerra (2ª Grande Guerra). A geração rebelde que, no fim dos anos 60, se revoltava contra o status quo na França e contra a guerra colonial em Portugal tinha algo contra que lutar. Vivia melhor que a geração dos pais, em conforto e posses económicas, mas era arrastada para projetos militares alienígenas aos quais se opunham. Queria tomar parte na construção da História e não ser arrastada como nota de rodapé como acontecera aos pais. Depois chegou o 25 de abril e as liberdades misturaram-se inicialmente com as libertinagens em que tudo era permitido. Os jovens dos anos 70 e 80 nasceram já com o rei na barriga. Nada era proibido, tudo era permitido e podiam almejar a uma sociedade sem classes em que todos tinham acesso ilimitado a todos os bens, sendo felizes até todo o sempre. 
Antes do 25 de abril em Portugal havia uma coisa chamada lápis azul, ou censura, que em 1972 me cortou 70 páginas a um livrinho de poemas adolescentes que publiquei com cerca de trinta páginas… o resto é já história, o 25 de abril trouxe a liberdade de pensamento e de expressão e muita água correu sob as pontes e sou confrontado por uma sociedade mais desigual do que nunca, de falsa fluência consumista.
Quando cresci havia respeito pelos veteranos sobreviventes da mortandade na campanha portuguesa na 1ª Grande Guerra, conheci alguns heróis, de medalhas ao peito em marchas da famigerada Liga dos Combatentes (a que pertenci durante anos após o 25 de abril, comprava-se comida barata no “casão”). Hoje, não sabemos quantos são, quantos sofrem, quantos sobrevivem. 
Nalgumas aldeias e vilas do interior profundo de Portugal alguns autarcas mandaram erigir pequenos monumentos em honra da memória desses bravos, mas regra geral, foram esquecidos e temem falar sobre o tema, ou evitam-no a todo o custo. Nos Açores, autores houve que trataram o tema em livro: Urbano Bettencourt, Cristóvão de Aguiar, João de Melo, para citar apenas alguns que me vêm à memória de momento, mas outros preferem manter um silêncio discreto, tal como o dono do café da esquina, o dono do restaurante mais acima, o lavrador que vive na rua e se recusa a falar do tema e tantos outros de que nem sei a existência.
Cresci, como sabem, numa ditadura. Havia até quem lhe chamasse branda, como brandos eram alegadamente os costumes do povo que a suportava. Cresci acreditando que um dia o país faria parte da Europa e do mundo, tão longe que bem podia pertencer a outra galáxia. Lembro-me de ir a Tui (Galiza) comprar discos dos Beatles ou beber Coca-Cola que em Portugal eram proibidas com medo dos miasmas contagiosos de civilizações estrangeiras. Depois, veio o dia de todas as esperanças, 25 de abril (quase sem mortes e com cravos na ponta das espingardas) e eu, em Timor, esperei, tardava a chegar (teria ido de barco?) e jamais arribou. 
A europa cresceu, o sonho da europa unida medrou e cresceu descontroladamente, até ter mais olhos que barriga e ficar desesperadamente obesa na palhaçada que hoje é. Por toda a parte, uma após outra, as ditaduras iam sendo aniquiladas e substituídas por modelos de democracia onde alegadamente o povo e a sua vontade eram representados em parlamentos. Com a queda do muro de Berlim e a glasnost a dar lugar a uma nova Rússia todos acreditamos que sonhar era isto, quando se tornavam realidade até na América latina e América do sul. Já o neoliberalismo da nova ordem mundial tinha disseminado sementes com a Thatcher e o Ronald Reagan, mas não sabíamos que isso iria perverter todo o ocidente. 
Lentamente, nos últimos vinte anos assistimos a um constante retrocesso nas conquistas dos direitos fundamentais da humanidade: igualdade, solidariedade e justiça. Mais do que nunca as democracias estão a ser manipuladas criando a aparência de vontade popular através do voto universal, mas, na prática, substituídas por autocracias dos EUA, à Venezuela e dezenas de países, sem falar daqueles onde as escolhas democráticas foram substituídas por nomeações da grande e anónima banca internacional, do grande capital do petróleo às farmacêuticas que tudo controlam. Isto num mundo em que a verdade é ficção e a ficção é a neoverdade. Ao ler Umberto Eco, O Cemitério de Praga, apercebi-me de que como isto sempre aconteceu sem nos darmos conta. Entretanto, países que se habituaram a mandar e a serem os xerifes do universo, como os EUA continuam a inventar primaveras políticas, depondo ditadores ou democratas a seu bel-prazer. 
Há algo que sempre afirmei e reitero, mesmo que já não sirva para grande coisa, o 25 de abril trouxe-me o bem mais precioso: a liberdade de expressão, a mim que sou um individualista nato e jamais conseguiria viver numa autocracia. Dantes, os países democráticos tinham eleições os outros não (nem mesmo as mascaradas eleições do partido único em Portugal o ocultavam). 
Timor-Díli 25 de abril 1974: Era hora de jantar e eu estava de Oficial (Ajudante) de Dia no Quartel-general. O idoso Oficial de Dia já estava há muito a olhar para o seu umbigo, depois da sua rodada habitual de vinho “Periquita” ou outro qualquer. Toni Belo, operador da Telecom local, a Rádio Marconi, ligou para o Quartel-General a dizer-me que ia ter uma chamada telefónica uma hora depois. Chamei o condutor de serviço, mandei-o ligar o Jeep e passados minutos estava em Díli, ansiosamente esperando ‘a chamada’. Pressenti tratar-se de algo muito importante. 
Anteriormente, acordara com a família que só haveria telefonemas em caso de emergência. Há muito que confirmara que toda a correspondência era sujeita a censura prévia e as chamadas telefónicas gravadas. E ouvi quase sem acreditar: Era a REVOLUÇÃO. Embora Timor não dispusesse de telex, desde o ano anterior dispunha de contactos radiotelefónicos com o mundo exterior. 
Sem perder tempo, pedi ao condutor para passar por casa nos apartamentos da SOTA, no Largo de Lecidere, onde comunico aos colegas de habitação (o cirurgião Prata Dias e o Eng.º Proença de Oliveira, subchefe dos Serviços de Agricultura) o que ouvira. Pedi-lhes o máximo sigilo, ligo o rádio em ondas curtas e regresso ao Q.G. (Quartel-General) onde anoto que nada havia a assinalar da ‘ronda’ pela cidade. Durante o resto da noite, escuto avidamente os noticiários da BBC, Rádio Austrália e uma série de emissoras (até ouvi a Rádio Paquistão, pela primeira vez). 
Na manhã seguinte, o camarada Freitas, que me ia render, pergunta se havia novidades de Portugal. Sem confiar em ninguém, , respondi-lhe: “Nada, que esperavas?” Os dias que se seguem são caóticos, com todos os rumores a circular e um generalizado sentimento de incredulidade pelos acontecimentos. Quando as novas de que o governador tinha mandado apreender a gravação e a versão impressa do discurso, a maior parte das pessoas convenceu-se de que a ‘Revolução dos Cravos’ não era imaginação. 
Os dias passam, e o oportunismo camaleónico é avassalador. Do dia para a noite todos são revolucionários. A oposição à continuação do coronel Aldeia no poder cresce de dia para dia. Ameaça tornar-se numa bola de neve, com os militares definitivamente divididos entre os progressistas – maioria de oficiais milicianos, furriéis e sargentos - e a velha guarda dos oficiais de carreira. 
Entretanto em Portugal, os soldados usam os cravos encarnados nos canos das espingardas. O povo excitado com a liberdade acabada de aprender. Sobem os barómetros da esperança depois de 48 anos de obscurantismo. A situação começa a clarificar-se em maio, embora nem todos os decretos aprovados em Lisboa se tornem extensivos a Díli. Quase nem um tiro fora disparado em Portugal. O regime caiu porque estava tão podre que estava incapacitado de suster qualquer ataque. A celebrada vitória vem estampada em todos os jornais e revistas que chegam a Timor, mas de uma certa forma, parece estar a anos-luz de Timor. 
Depois do 25 de abril (data da Revolução em Portugal) comecei a publicar artigos que o Comando Militar e, em especial o CEM (Chefe do Estado-Maior Arnao Metello) queriam evitar. Era chamado quase todas as manhãs e simpaticamente mandava o motorista no velho Volkswagen do Estado-Maior buscar-me a casa. Nessa rotina (prolongou-se por bastante tempo e trouxe consequências ao meu serviço militar) lá tinha de explicar porque publicara artigos censurados e considerado material proibido. Uma verdadeira caça ou o jogo do gato e do rato. Ramos Horta viu assim o 25 de abril (entrevista dada ao Expresso em 28.11.2015.
Ele acreditou que as coisas estavam a mudar, eu continuo à espera….

Chrys Chrystello*
*Jornalista, Membro Honorário Vitalício nº 297713

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