Diário dos Açores

Feliz coincidência de pontos de vista

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Opinião

Deu-me muita satisfação verificar que vão surgindo vozes autorizadas a reclamar a criação de um novo órgão político e de governo europeu, concretamente uma Assembleia Parlamentar, composta por delegações dos Parlamentos Nacionais e situada ao mesmo nível de decisão do Parlamento Europeu. De entre os subscritores de uma tomada de posição com tal conteúdo, divulgada recentemente na Imprensa, encontra-se Thomas Piketty, professor universitário de Economia em França, com livros publicados em várias línguas, dos quais se destaca o exaustivo estudo intitulado “O Capital no século XX”, já traduzido em Portugal, que faz do seu Autor um sério candidato ao Prémio Nobel da Economia.
 O Professor Piketty esteve há anos em Lisboa, para uma conferência na Fundação Gulbenkian, enchendo o Grande Auditório, até haver pessoas sentadas no chão. Pude conversar com ele antes da conferência, que versava a temática do livro acima mencionado, e fiquei com uma impressão muito favorável. Depois disso tenho acompanhado as publicações do ilustre economista, abordando agora predominantemente o complicado tema da concentração da riqueza, o qual se tem vindo a agravar em resultado das políticas neo-liberais, aplicadas por governantes que parecem cegos para as consequências desastrosas das suas infelizes opções. Na tradição francesa dos Intelectuais Públicos, Thomas Piketty mantem assídua colaboração nos jornais, criticando situações que o merecem e defendendo soluções democráticas para a ultrapassagem das crises que defrontam as nossas sociedades. Um conjunto das suas crónicas recebeu, em livro, saído antes das últimas europeias, o significativo título:” Às urnas, Cidadãos!” 
Defendo a criação de uma Assembleia Parlamentar Europeia desde os longínquos tempos em que fui Presidente da Assembleia da República. Cheguei mesmo a tentar mobilizar os Parlamentos Nacionais dos diversos Estados Membros para se erguerem reclamando tal objectivo, na altura em que estava em curso o processo de aprovação do chamado Tratado Constitucional, para os europeístas mais entusiastas designado mesmo como Constituição Europeia.
Para tal efeito enviei uma carta aos Presidentes dos Parlamentos Nacionais e recebi respostas positivas de uns deles e recusas de outros, o que me pareceu natural. Aliás, de imediato o problema ficou em suspenso com a rejeição em referendo do mencionado Tratado por dois dos países fundadores da CEE, a Holanda e a França, nem mais nem menos.
O impasse viria a ser ultrapassado com a aprovação do Tratado de Lisboa, no qual se perpetrou um lamentável e desnecessário ultraje à Democracia: - os chefes de Estado e de Governo com assento no Conselho Europeu conluiaram-se no sentido de retirar do Tratado Constitucional algumas disposições mais controversas de sentido federalizante, repetindo todo o resto num texto amalgamado e propositadamente confuso, com o compromisso expresso de não ser submetido a qualquer referendo popular. Ora, para possibilitar tal consulta popular sobre tratados europeus até se tinha procedido a uma revisão constitucional cirúrgica em Portugal, no início da Xª Legislatura, cabendo-me a tarefa de presidir à competente Comissão Eventual... Foi, portanto, um trabalho inútil!
O Tratado de Lisboa não criou a pretendida Assembleia Parlamentar Europeia e fez mal! Argumentam os que são contra, que já temos o Parlamento Europeu, e que o mesmo se opõe a tal intuito, o que é verdade e bem se compreende. Mas a ideia era reforçar a legitimidade democrática das instituições europeias, que sofrem de um real défice democrático, por ser em geral muito escassa a participação popular nas eleições do Parlamento Europeu. No caso concreto da Região Autónoma dos Açores as últimas cifras puseram a nu uma abstenção de perto de 80%, o que me parece deveras vergonhoso. Não posso deixar de lembrar que no meu tempo não era assim!
Que os líderes do Parlamento Europeu sejam contra a criação de uma Assembleia Parlamentar até se compreende; mas por mim já não compreendo nem aceito passivamente que os chefes de Estado e de Governo, tão propensos a criar, em geral para os próprios, múltiplos cargos europeus, se oponham a tal desiderato. E daí, exercendo o seu domínio sobre as maiorias nos Parlamentos Nacionais, condicionem a natural expressão de vontade dos mesmos, tornando evidente que as regras, aliás inconstitucionais, sobre disciplina de voto, privam os mesmos Parlamentos da sua primazia no funcionamento dos regimes democráticos nacionais.
Com a pretendida Assembleia Parlamentar Europeia visa Thomas Piketty, e os co-signatários da tomada de posição em causa, estabelecer uma aliança entre o Parlamento Europeu e os Parlamentos Nacionais tendo em vista a criação de um imposto europeu sobre as fortunas de valor superior a dois milhões de euros, destinado a financiar devidamente as políticas europeias de transição energética e protecção ambiental. Com tal propósito, e por mais bem fundamentado que seja, duvido que consiga reunir apoios significativos.
O meu argumentário sobre a dita Assembleia Parlamentar é diferente, se bem que não ponha de parte uma futura partilha de poderes tributários com o Parlamento Europeu. Para além do já referido reforço da legitimidade democrática das instituições governativas da União e portanto dela mesma, envolvendo mais directamente o órgão democrático por excelência que é, em cada Estado Membro, o respectivo Parlamento Nacional, proveniente de eleições livres e amplamente participadas, à Assembleia Parlmentar incumbiria o exercício das competências já hoje reservadas aos Parlamentos Nacionais, nomeadamente a fiscalização do respeito pelo princípio da subsidiariedade da legislação europeia.
Além disso, a Assembleia Parlamentar seria incumbida do acompanhamento democrático do exercício das competências europeias nas matérias do âmbito da cooperação inter-governamental, das quais se destacam a política externa e de defesa, travando a indevida intromissão do Parlamento Europeu nelas e restringindo a respectiva fiscalização democrática à própria Comissão, encarregue de definir e prosseguir as políticas comunitárias, que de resto tendem a ser cada vez em maior número e de natureza mais variada.

João Bosco Mota Amaral*
* (Por convicção pessoal, o Autor não respeita o assim chamado 
Acordo Ortográfico)     

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