Diário dos Açores

Um filme de terror chamado SATA

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Diário inconveniente

Um conselho prévio: se tiver curiosidade em ler o relatório da auditoria da Secção Regional dos Açores do Tribunal de Contas sobre a SATA, tome antes um ansiolítico.
São 224 páginas que bem poderiam ser adaptadas a um filme de terror sobre a incompetência de governantes e gestores, a irresponsabilidade em lidar com dinheiros públicos e a inexplicável impunidade criminal que deveria recair sobre os protagonistas envolvidos.
Entre 2013 e 2019, período auditado, a SATA foi um autêntico brinquedo nas mãos dos seus administradores e do respectivo accionista.
Só depois da leitura deste relatório, excelentemente elaborado pelos auditores do Tribunal de Contas, é que poderemos perceber, com clareza e rigor, a razão porque a SATA se encontra na situação ruinosa em que a deixaram.
Está ali tudo descrito, tudo explicado e, nas matérias em que foi mais difícil descobrir como se foi capaz de lá chegar, é fácil concluir que existem suspeitas de outros interesses, que não os da empresa ou da região, que merecem investigação por parte do Ministério Público.
Não surpreende, por isso, que a Comissão Europeia nos obrigue a ver-nos livres da SATA Internacional, que foi um brinquedo político nas mãos dos governantes e um desleixo imperdoável dos seus administradores.
É que a SATA Internacional, pelo poder que detinha na definição de rotas e ao serviço de clientelas amigas, foi a principal causa do arrastamento da companhia para a falência.
O caso mais paradigmático foi a imposição, pelo governo de então, para explorar rotas sujeitas a exploração de serviço público sem a correspondente compensação.
Um pouco à semelhança do que o desastrado ministro Galamba anda agora a fazer com a SATA, não entregando os 9,5 milhões de euros, que estão inscritos no Orçamento de Estado, destinados às OSP do Faial, Pico, Santa Maria e Funchal.
Talvez seja preciso levar um computador do ministério e chamar o SIS para que o ministro se mexa mais depressa.
Mais grave ainda - segundo a auditoria - foi a irresponsabilidade com que os gestores da SATA, com a aprovação da tutela, optaram por renovar a frota de longo curso, para depois chegar à conclusão que tinha sido errada e... reverter tudo.
Toda esta brincadeira provocou uma degradação da situação económica e financeira da SATA, que custou cerca de 41 milhões de euros.
Como se não bastasse, assistiu-se naqueles anos a um persistente atraso no pagamento das indemnizações compensatórias devidas pela Região Autónoma dos Açores, enquanto concedente de serviços aéreos inter-ilhas, que, no final de 2019, totalizavam 51,7 milhões de euros!
Só para se ter uma ideia da santa casa em que se tornou a SATA Air Açores, perante o permanente calote do governo, foram realizadas naquele período 8.765 frequências para além dos serviços mínimos contratualizados... 
O Tribunal de Contas enfatiza, nas suas conclusões, que na execução daqueles contratos registaram-se desvios entre os défices de exploração reais e os correspondentes valores contratualizados, que nem sempre deram lugar à reposição do equilíbrio financeiro da concessão. 
Nestas circunstâncias, a Sata Air Açores assumiu a componente dos défices não compensados, que totalizou 9,2 milhões de euros. 
Claro que tudo isso teria consequências, porque impulsionada pelos atrasos no pagamento daquelas compensações financeiras, assim como pelas crescentes necessidades de liquidez da subsidiária Sata Internacional, a dívida financeira da Sata Air Açores expandiu-se 123,7 milhões de euros (imagine-se, +100,7%!), atingindo 246,4 milhões de euros no final de 2019.
Uma contabilidade destas já era mais do que suficiente para o responsável máximo do Governo Regional chamar os responsáveis, dar um murro na mesa e mandar parar com os desvarios.
Só que aconteceu o contrário.
O accionista gostava deste descalabro, continuava a fazer da SATA o que lhe apetecia e atirava para o bolso de todos nós, cidadãos contribuintes, a factura final que agora estamos a pagar.
Tudo isto diz bem como se governou durante estes últimos anos, onde não faltaram os episódios mais mirabolantes, com negócios misteriosos à mistura, altamente suspeitos, que qualquer cidadão tem o dever de ser esclarecido sobre as razões que levaram esta gente a afundar uma empresa que era a menina dos nossos olhos, pela importância estratégica que detinha e que, agora, vamos perder por completo.
O caso da compra do famoso avião Cachalote é um dos pontos altos deste guião de terror, que faz as delícias de qualquer realizador de cinema.
A coisa conta-se rapidamente.
Às tantas a administração da SATA decidiu que deveria renovar a frota de longo curso com dois aviões Airbus 330-200 (wide-body), para substituir os quatro velhinhos A310.
Uma decisão desta envergadura precisava de consistência técnica e foi pedido parecer a duas consultoras de renome na aviação comercial, que custou 181 mil euros: a Aviado Partners (63 mil euros) e a Lufthansa Consulting (118 mil euros).
O problema (para os administradores da SATA) é que ambas coincidiam num ponto essencial: o modelo de aeronave que melhor se adequava à rede de operações da empresa era do tipo ‘narrow-body’, asserção sustentada por uma análise comparativa das margens que seriam obtidas operando uma frota exclusivamente constituída por aeronaves deste tipo, face à alternativa de utilização de uma frota mista.
Mas os administradores da SATA, com a aprovação do governo, estavam obcecados (vai lá perceber-se porquê) pelos A330 e pediram desesperadamente um outro estudo que aprovasse a opção.
Foi contratada, então, uma tal Mach, L.da, em parceria com o Instituto Superior de Educação e Ciências (?), o qual concluía ser «O A330-200 (…) a aeronave mais adequada ao enquadramento e perspetivas futuras da SATA» .
Aparentemente, segundo os auditores do Tribunal de Contas, terá sido com base numa versão preliminar do mencionado estudo – não disponibilizada ao Tribunal – que o conselho de administração da Sata Internacional, por deliberação de 26-03-2015, decidiu escolher aquela aeronave para substituir a frota dos Airbus A310-300, condicionando, todavia, a eficácia da decisão a posterior autorização do acionista único – a Região Autónoma dos Açores, o que veio a acontecer mais tarde. 
Uma curiosidade importante: a Mach, L.da é uma sociedade por quotas que opera sob a designação comercial Mach Aviation Consultancy, dispondo do seguinte objeto social: consultadoria em aviação, projetos técnicos, estudos de impacto ambiental, formação, representações, mediação de negócios, estudos de mercado, projetos de arquitetura, urbanismo e design, apoio logístico à formação, operações de despacho de voo, conceção, utilização e fornecimento de sistemas informáticos de gestão de operadores aéreos, gestão imobiliária, incluindo arrendamento e alojamentos de curta duração, atividades de criação artística, comércio a retalho de artigos em segunda mão e restauração.
Foi com base no estudo deste empresa multi-actividades, entre as quais “criação artística” e “comércio a retalho de artigos em segunda mão e restauração”, que facturou à SATA 23. 600 euros, que foram, então, encomendados dois A330.
Felizmente acabou por vir só um, o tal que foi recebido no aeroporto de Ponta Delgada com grande festa, promovida pelo Presidente do Governo, que convidou a cantora Nelly Furtado para ser madrinha da inauguração.
Decorridos apenas 4 meses da entrada em operação do Cachalote, a administração das SATA apresenta um o Plano de Negócios 2015/2020, revertendo a estratégia anteriormente delineada para a renovação da frota. 
A conclusão do Tribunal de Contas é óbvia: “...foi uma decisão estratégica errada, tecnicamente não sustentada e sem racionalidade gestionária, suscitando-se dúvidas sobre as razões subjacentes a esta opção, em consequência da qual a Sata Internacional – Azores Airlines, S.A., registou perdas na ordem dos 42,2 milhões de euros, dos quais 21,6 milhões de euros entre 2016 e 2019”.
Pior ainda: para devolver o Cachalote à procedência a SATA teve que pagar uma indemnização de mais de 20 milhões de euros!
Isto é apenas a ponta do iceberg em como a SATA foi gerida.
Uma gestão ao longo destes anos que o Tribunal de Contas descobriu ser de “elevado grau de informalidade que continuou a caracterizar o funcionamento dos órgãos sociais das empresas do Grupo SATA, o que consubstancia o incumprimento de disposições legais e estatutárias, não sendo admissível num contexto de gestão de dinheiros públicos”. 
Perante este terror, não admira que, em 2022 o Grupo Sata continua com um Resultado Líquido negativo de 36, 7 milhões de euros, apesar de num contexto de passagens para residentes de custos muito elevados (ainda que os residentes venham a ser compensados pelo custo superior ao valores fixados legalmente), que os emigrantes estejam a pagar balúrdios para cá virem e num ano em que foram batidos recordes de passageiros!
Nem mesmo assim a SATA levanta cabeça.
Está contaminada de tal ordem que a nós, cidadãos a pagar por tudo isto, não nos resta outra alternativa senão exigir aos responsáveis por este descalabro, que nos venham explicar, publicamente, como foi possível chegar até este grau de destruição de uma empresa, sem que ninguém se responsabilize.
O silêncio de todos eles e do Partido Socialista é muito estranho.
Este filme merece sequela.
Pode comprar as pipocas, porque o terror vai continuar nos próximos capítulos.

Osvaldo Cabral
osvaldo.cabral@diariodosacores.pt

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