Diário dos Açores

Estórias de superstições e maldições (Timor, Macau; Porto) Parte 2

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Para terminar a genealogia materna remete-me para a aldeia da Eucísia em Alfândega da Fé (distrito de Bragança). Esta era a aldeia da avó materna e da mãe, cognominada “a terra das feiticeiras”. Era eu ainda um infante quando imaginava (ninguém me explicara o oposto) que as feiticeiras fossem a avó e as tias-avós. Não sabia porquê, nem o conseguia explicar nos atos delas, mas imaginava que se aquela aldeia era das feiticeiras, elas o poderiam ser, mesmo sem me causarem calafrios ou medo a mim e a outras crianças. Podia acontecer que só fizessem feitiços aos que não pertenciam à família ou aos que não pertencessem à aldeia, que não era mais que um destino sem saída, um mero desvio de 1,5 km em terra, na estrada de macadame de Alfândega da Fé à Junqueira. Mas a verdade é que é mesmo a terra das feiticeiras que me enfeitiçaram para todo o sempre e me tornaram nativo da Eucísia sem lá ter nascido. Hoje já não há pessoas, nem fiéis, nem altifalantes, nem padre que só ocasionalmente aparece para uma missa de defuntos nalguns meses do ano, ou nem isso. Os sacerdotes já não se deslocam às paróquias a pé ou de burro. Apesar da facilidade e modernice do automóvel, dispõem de menos vontade para se moverem. Até os clérigos se aburguesaram e acomodaram, como a restante sociedade. Dantes, chovesse, nevasse, fizesse sol escaldante ou frio, nunca faltavam a uma celebração dominical, era essa a sua sagrada missão. Agora andam demasiado ocupados em tarefas menos importantes que a salvação das almas. Depois dos padres, até as bruxas e feiticeiras se foram. Nem almas há para arrebatar. A emigração para França, Luxemburgo e Suíça (década de 1960) desertificou-a. O progresso civilizacional de migração costeira atraindo jovens para as cidades acabou o trabalho. Perderam-se mais de 700 pessoas em cerca de 40 anos. Hoje, a média das idades supera os 70 anos. Pouca gente, ou já mesmo ninguém, se recorda de mim e já não há vizinhos. A terra os levou a todos para o cemitério da aldeia ou outro qualquer.
Os tempos de antigamente permanecem gravados na memória, tal como as lendas que associam a localidade a “terra de feiticeiras”. “Ouvi contar a lenda das feiticeiras aos antigos. Diziam que veio para cá um padre que se embebedou, e, no dia seguinte, acordou na loja de um cavalo. Então espalhou que foram as bruxas que o levaram para lá”, explicou Adélia Monteiro, de 67 anos. A partir daí, quem passava temia o poder das feiticeiras e alguns até traziam trovisco para as afugentar. “Contava-se que passou aqui um homem a cavalo num burro com um ramo de trovisco. As mulheres sentiram-se ofendidas e juntaram-se todas para bater ao forasteiro”, recorda Maria Alice (habitante pouco mais velha do que eu, antiga vizinha bem conhecida da família). O tempo passa devagar. É um local de sossego e calma transmitida pela natureza imutável há séculos.
Mas a verdadeira Lenda das Feiticeiras é esta narrada no meu Cancioneiro Transmontano de 2005:
 Reza a lenda que quando esta freguesia integrava o arcebispado de Braga era, amiúde, visitada por um padre do Minho. O sacerdote vinha visitar a Igreja e verificar se tudo corria bem pela paróquia. O abade era também pessoa de boa mesa e boa pinga, fazendo jus a uma caraterística que esteve associada a estas figuras. Certa noite, depois de um jantar muito bem comido e ainda melhor bebido na casa onde ficava hospedado na Eucísia, o padre foi-se deitar. A meio da noite e para fazer as necessidades fisiológicas sentidas dirigiu-se às cavalariças. No entanto, embalado pelo sono ou pela bebida, aí se deixou ficar até de manhãzinha, altura em que deram com ele a dormir neste local. Em desculpa disse não se recordar como tinha ido ali parar e atribuiu tal feito às Feiticeiras. Foi assim que a Eucísia ficou conhecida como terra das feiticeiras. Desde então quem passava pela localidade temia o poder das feiticeiras e até havia quem trouxesse trovisco para as afastar.
E pronto são estas as memórias de superstições e maldições que me acompanharam desde 1960 a 1995.

Chrys Chrystello*
*Jornalista, Membro Honorário Vitalício nº 297713

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