Madalena Férin  revisitada por Vasco M.  Rosa
Diário dos Açores

Madalena Férin revisitada por Vasco M. Rosa

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Para começar antecipando conclusões e um juízo, direi que É preciso romper o amanhã. Madalena Férin revisitada é um livro deveras singular, e já estou  a decalcar  o título do  seu primeiro capítulo.  
Por um lado, porque não rejeita o elemento genealógico e familiar da autora – e este dado é importante para se «compreender» (ao menos em parte) a actividade literária de Madalena Férin, enquadrada por uma família que de forma diversa e plural deixou marcas na história cultural e artística dos Açores. A componente biobibliográfica integra uma introdução, chamemos-lhe assim, em que Vasco Medeiros Rosa procede a uma revisitação da escritora, destacando aspetos da sua personalidade e actividade literárias e da sua presença em antologias. Além disso, uma investigação minuciosa, permitiu a Vasco Rosa reconstituir a rede de empenhamentos, estímulos e iniciativas pessoais, mas agindo em rede, que proporcionaram a Madalena Férin a sua estreia literária –  Armando Côrtes-Rodrigues, Eduíno de Jesus, Ruy Galvão de Carvalho, mas também  João Afonso (na Terceira), em torno de uma instituição como o Instituto Cultural de Ponta Delgada. Finalmente, porque procede a um inventário das «leituras públicas» que a obra de Madalena foi suscitando ao longo do tempo, completando-se o livro com um conjunto de dispersos, entre eles, o opúsculo de 1958, Imagens da Grécia, um relato de viagem,  e a entrevista concedida a Álamo Oliveira em 1990). 
Nos anos 70 do século passado, um teorizador literário alemão (Hans Robert Jauss), perfeitamente sintonizado com as correntes que situavam o leitor no centro do fenómeno literário, escrevia que a «História da literatura é um processo de recepção e produção estéticas que se cumprem na actualização de textos literários, através do leitor que lê, do escritor que produz e do crítico que reflecte.» . 
Sem entrar nos meandros e nas implicações daquilo a que Jauss chama a «estética da recepção» (e a que talvez fosse mais apropriado chamar «teoria da recepção»), deve referir-se aqui a importância de que se revestem para a história literária as recensões, os ensaios, mesmo as notas, as paráfrases que se ocupam de uma determinada obra. 
Situados num tempo determinado, esses textos atestam os parâmetros estéticos do momento, a começar pelos do leitor-recenseador, e em relação aos quais a obra pode ser liminarmente rejeitada ou bem acolhida, lida sob uma  ou outra perspetiva semântica e discursiva, colocada numa linha de continuidade ou de inovação. No conjunto, acabam por constituir uma rede de abordagens e interpretações, concretizando a pluralidade de leituras a que uma obra se abre, mas registando também as coordenadas ideológicas e estéticas da época e de quem lê ou recenseia. 
O leitor actual pode, com este livro, percorrer a história da recepção da obra de Madalena Férin, tendo ao seu dispor as sucessivas interpretações que o tempo sedimentou e permitem agora uma leitura muito mais abrangente e complexa. A começar, naturalmente, pelo prefácio que Eduíno de Jesus escreveu para os Poemas (1957), livro inaugural da poetisa.  
Trata-se de um texto ainda hoje iluminador, pela clareza e assertividade, pela contextualização dessa poesia no meio-século açoriano, convocando também uma outra voz feminina, a da faialense Otília Frayão (só muito recentemente editada em livro). Um meio-século de que o próprio Eduíno era agente efectivo, enquanto membro dessa geração que pelos anos 40-50 assinalava em Ponta Delgada a sua presença e a sua luta em prol do modernismo que tardava em chegar. Por isso, é possível a  Eduíno reconhecer que os Poemas de Madalena Férin representavam «um dos casos mais interessantes da poesia moderna dos Açores.» 
De resto, encontramos nesse prefácio, e na sua teorização sobre a especificidade do discurso poético, alguns tópicos recorrentes em outros textos publicados no jornal A Ilha dessa época e com os quais Eduíno tentava chamar à boa razão do modernismo aquelas «almas embaraçadas» (Gil Vicente) que se achavam capazes de fazer poesia moderna cortando a prosa em bocadinhos ou continuavam entrincheiradas numa concepção da poesia como uma colectânea de espirros emotivos (a metáfora é minha, não de Eduíno). 
Os restantes vinte e seis textos (assinados por dezassete homens e três mulheres) registam cronologicamente as diferentes modalidades expressivas e discursivas que a obra de Madalena foi ganhando nos seus diferentes livros, entre a poesia e a prosa narrativa, e os modos como tudo isso foi lido. Ainda  que a «disponibilidade  crítica» se tenha reduzido na parte final, ou talvez por isso mesmo, importa referir aqui o ensaio de Ana Cristina Correia Gil (já de 2022), um  trabalho de largo espectro  sobre a   obra de Madalena (sem, todavia,  a contemplar  na totalidade) e que fecha bem o arco interpretativo começado  por Eduíno de Jesus seis décadas antes. 
Num momento em que o Instituto Açoriano de Cultura acaba de publicar a poesia completa de Madalena Férin (Violinos ocultos sob a relva, org. de Ângela de Almeida, 2023), este livro de Vasco Medeiros Rosa constitui um precioso trabalho para uma aproximação à obra da autora, e um contributo fundamental para a compreensão de um segmento da história cultural dos Açores, da sua literatura, em particular. Felicito-o por isso. 
Como também felicito a Câmara Municipal de Vila do Porto pelo apoio ao projecto de Vasco Medeiros Rosa e ao livro daí resultante. «Quem honra honra-se também», escreveu Pedro da Silveira, a propósito das celebrações que ele esperava viessem a ser feitas nas Flores por ocasião do centenário de Alfred Lewis em 2002. 
A edição de É preciso romper o amanhã. Madalena Férin revisitada constitui um gesto de reconhecimento e homenagem por parte da outra ilha de nascimento de Madalena Férin, ou talvez a única, se pensarmos, com Marguerite Yourcenar, que «o nosso verdadeiro lugar de nascimento é aquele em que lançamos pela primeira vez um olhar de inteligência sobre nós próprios». E acerca disto, a obra de Madalena tem momentos bastante elucidativos.  
O retrato de Madalena Férin reproduzido na capa, da autoria de Victor Câmara, constitui ainda um outro sinal das cumplicidades literárias e artísticas de um  tempo insular.   


Urbano Bettencourt
ROSA, Vasco Medeiros  (2023), É preciso romper o amanhã. Madalena Férin revisitada. Lajes do Pico: Companhia das Ilhas. 

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