Diário dos Açores

A Autonomia no Corpo Santo

Next Article Madalena Férin  revisitada por Vasco M.  Rosa Madalena Férin revisitada por Vasco M. Rosa

Festas do Império da Caridade, bairro do Corpo Santo, Angra. Lembro a dança solidária de há dias. Fechou com um concerto e com aquelas roqueiras, sonoramente incorrectas, que ainda fazem as festividades populares. Tenho a imagem guardada: já em horas de madrugada, o Tiago, o convivial e sempre amável último pescador do Corpo Santo, em cima do império, a lançar os foguetes.E os foguetes a saírem, incandescentes de alegria, por detrás da cruz. Cá em baixo, no palco, os zohms, forma de dizer “os homens” em variante terceirense, a derramarem o melhor do seu rock de foliona crónicas de costumes sobre uma certa vida pitoresca nos Açores, dos que vivem, dos que chegam da emigração. Noutro dia, foi a vez dos Ti-Notas, os Pogues terceirenses de uma folkalhada satírica - ou não integrassem eles o fraterno e gozão Hélder Xavier. 
Volto aos últimos minutos do folguedo. Saltos dos membros da comissão deste ano, a que tudo deu para tudo oferecer. Vivi estas festas. Dentro e fora de casa.  Lá em baixo, com todos, a partir da sala e da cozinha, em dia de quinto toiro.  Penso que foi o Joel Neto que terá dito, num programa de televisão, que as festas do Espírito Santo, a forma como são organizadas, continuam a ser o melhor dos exemplos para o modo como os Açores se podem organizar. Uma iniciativa de um conjunto de pessoas, diferente em cada ano, que favorece a distribuição igualitária e a omissão, por um momento, de títulos, académicos e outros. Prometi falar de autonomia nestes artigos e também por isso digo:  Autonomia é isto. Cada império, autónomo, a dar o melhor, brioso, preocupado com as necessidades diversas das ruas, aberto a visitantes.
Também foi no Corpo Santo que, anteontem, aconteceu mais um momento, chamemos-lhe, autonómico – dos verdadeiros, dos que aproximam as ilhas açorianas, em geral apartadas, e não apenas pelo mar e pelo ar. Juntou-se aqui em casa um grupo de amigos e cúmplices do poeta Emanuel Félix, em momento de gravações para o filme sobre ele que, enfim, estamos a terminar. 
À mesa, o Dimas, o Álamo, o Onésimo, a Leonor, a Joana, a Deka, o Tiago, a Assunção, o Rui. A recuperação da memória do autor (maior) de “Poema dos Náufragos Tranquilos” já seria suficiente para elevar os Açores como chão feito de vários terrenos que se completam. Mas há mais um dado que fez acontecer uma ideia de Açores como lugar próprio, a trabalhar como comunidade. A circunstância de, naquela celebração, terem sidas trazidas ao repasto e ao brinde histórias de várias ilhas, passadas com o Emanuel e com outros. São Jorge, por exemplo, foi evocado mais do que uma vez pelo humor, construído com sabedoria, surpresa eoportunidade, das suas gentes.Com aquela fina consciência de que a lentidão é um valor, um valor transcendente, lembrado num poema de Emanuel Félix: “Deixei o meu relógio algures numa fajã/Onde não contam horas nem minutos. /É o tempo de Deus”. É o tempo, demorado, do melhor destas ilhas.
Nuno Costa Santos

Share

Print

Theme picker