De regresso ao Pico dez anos depois (1)
Diário dos Açores

De regresso ao Pico dez anos depois (1)

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Opinião

A convite do meu amigo Leonardo Silva regressei à ilha do Pico no fim de semana passado, com a missão de apresentar o seu vinho Cacarita, Garrafeira, 2014. Foi palpitante regressar, dez anos volvidos, a uma ilha onde tinha ido dezenas de vezes, conhecia quase todos os produtores de vinho e tinha participado na reflexão sobre o futuro do vinho açoriano.Estava ansioso por ver as profundas alterações que a vinha e o vinho da ilha tinham sofrido, já que as estatísticas recentes suscitavam enorme expetativa. A área de vinha de castas europeias quase quadruplicou, passando de cerca de 260 para cerca de 900 hectares, o número de produtores mais que triplicou, sendo hoje de 23, o número de marcas de vinho ronda as 60 e o número de referências comerciais distintas é de cerca de 120. É certo que continuei a acompanhar os vinhos através da prova, mas ir à ilha e ver com os próprios olhos a evolução do setor era completamente diferente.
Enquanto o meu anfitrião se afadigava na preparação do evento para apresentar o Cacarita, Garrafeira, 2014, ao fim da tarde, aproveitei para visitar alguns produtores na companhia do jornalista António Mendes Nunes. O nosso guia, o colega Fábio Rocha, não podia ter sido melhor escolhido, pois, além de ter feito vinho em vários países do Novo Mundo e em algumas regiões do Continente, é um apaixonado da ilha e dos seus vinhos. Como enólogo, tem estado envolvido em projetos recentes e na conceção de alguns dos novos vinhos, mas também tem uma empresa de Enoturismo para explicar, com todo o detalhe, as vinhas e vinhos da ilha aos turistas. Eu só o conhecia digitalmente, através de alguns emails trocados, mas rapidamente constatei, com satisfação, que se preocupa com a vinha e o vinho da ilha de forma integrada, onde as tradições, a história, a paisagem, o respeito pelo ambiente e a identidade sãovariáveis essenciais do sistema. Quanta diferença em relação à minha última passagem pela ilha!
O nosso destino foi a costa norte da ilha, que eu conhecia menos bem e onde hoje há alguns dos mais dinâmicos projetos vitivinícolas. A manhã estava cinzenta e, na Madalena, por volta das 9 horas chuviscava. Nada de surpreendente, num arquipélago onde é norma viverem-se as quatro estações do ano diariamente. A nossa primeira paragem foi no Cachorro, um núcleo urbano junto à costa, integrado na Área da Paisagem da Cultura da Vinha, classificada Património da Humanidade em 2004. 


Com as casas de pedra negra vulcânica irrepreensivelmente recuperadas e algumas imaculadamente caiadas, parecia um presépio à beira-mar, onde o verde do musgo deu lugar ao negro da lava basáltica. Boa parte delas eram adegas antigas, onde os picarotos fizeram vinho, recebiam os amigos e passavam boa parte dos seus melhores momentos, com o petisco, o verdelho e a música a animá-los. Como não podia deixar de ser, visitámos o lajido, o famoso rola pipas, a lava encordoada, as rilheiras, o poço de maré e a escultura lávica, que deu nome ao local. As arestas vivas da lava negra denunciavam que era recente, com origem numa das últimas vezes em que o vulcão decidiu acordar, em 1 de fevereiro de 1718.Segundo os relatos da época, após um ribombar assustador, que causou o pânico na população da ilha e  do vizinho Faial, a “Montanha” começou a cuspir lava incandescente, cujas torrentes devastaram tudo o que havia pelo caminho, incluindo a pequena ermida existente, até se despenharem no mar. Acabava de se formar o Mistério de Santa Luzia, assim chamado por ultrapassar a compreensãodo povo. Desde então passou a chamar-se a “terra queimada” e os picarotos, logo que se recompuseram do desastre, retomaram a obra ciclópica de construir os muros de novos currais e de plantar a vinha no lajido e no biscoito entretanto formados, pois sabiam que a riqueza da lava vulcânica levaria as cepas a produções copiosas. 

Só quando nos embrenhámos nas primeiras vinhas é que tivemos a verdadeira noção da obra feita, tal a dificuldade de andar em cima de lava de arestas vivas e tão acidentada. Fiquei surpreendido com a quantidade de vinhas novas, quase todas feitas nos currais antigos, depois de serem arroteados da mata atlântica que os invadiu, dominada pelo incenso, faia e urze dos Açores. Constatei, mais uma vez, a sina da vinha no Pico, com vagas sucessivas de esplendor e abandono. Depois do vulcão ter destruído as vinhas no século XVIII, houve um ressurgir radioso, que tornou o licoroso conhecido nos quatro cantos do mundo. Porém, pouco mais de um século passado, as pragas e doenças vindas da América, a partir de 1853, tornaram a destruir a vinha e a obrigar os picarotos a emigrar ou a dedicarem-seà pesca da baleia. Os poucos que ficaram plantaram figueiras para a produção de aguardente e, mais tarde, cepas de espécies americanas para fazerem o venerado “vinho de cheiro”. Mas nem as figueiras, conhecidas por a sua lendária capacidade de sobrevivência, nem as cepas americanas resistiram, pois a maior parte dos picarotos emigrou à procura de uma vida melhor. É em grande parte dos currais das figueiras, reconhecidos por terem os muros em forma de meia lua, que hoje os novos viticultores estão a plantar parte da vinha nova de Santa Luzia. Oxalá perdure por muitos anos, pois os vinhos a que dão origem são únicos e deliciosos.

*Virgílio Loureiro é considerado como um dos mais prolíficos académicos, investigadores, enólogos e comunicadores do vinho,com uma prestigiada carreira como docente do Instituto Superior de Agronomia no domínio da Microbiologia. Por estes dias vai escrever no “Diário dos Açores”.

A convite do meu amigo Leonardo Silva regressei à ilha do Pico no fim de semana passado, com a missão de apresentar o seu vinho Cacarita, Garrafeira, 2014. Foi palpitante regressar, dez anos volvidos, a uma ilha onde tinha ido dezenas de vezes, conhecia quase todos os produtores de vinho e tinha participado na reflexão sobre o futuro do vinho açoriano.Estava ansioso por ver as profundas alterações que a vinha e o vinho da ilha tinham sofrido, já que as estatísticas recentes suscitavam enorme expetativa. A área de vinha de castas europeias quase quadruplicou, passando de cerca de 260 para cerca de 900 hectares, o número de produtores mais que triplicou, sendo hoje de 23, o número de marcas de vinho ronda as 60 e o número de referências comerciais distintas é de cerca de 120. É certo que continuei a acompanhar os vinhos através da prova, mas ir à ilha e ver com os próprios olhos a evolução do setor era completamente diferente.
Enquanto o meu anfitrião se afadigava na preparação do evento para apresentar o Cacarita, Garrafeira, 2014, ao fim da tarde, aproveitei para visitar alguns produtores na companhia do jornalista António Mendes Nunes. O nosso guia, o colega Fábio Rocha, não podia ter sido melhor escolhido, pois, além de ter feito vinho em vários países do Novo Mundo e em algumas regiões do Continente, é um apaixonado da ilha e dos seus vinhos. Como enólogo, tem estado envolvido em projetos recentes e na conceção de alguns dos novos vinhos, mas também tem uma empresa de Enoturismo para explicar, com todo o detalhe, as vinhas e vinhos da ilha aos turistas. Eu só o conhecia digitalmente, através de alguns emails trocados, mas rapidamente constatei, com satisfação, que se preocupa com a vinha e o vinho da ilha de forma integrada, onde as tradições, a história, a paisagem, o respeito pelo ambiente e a identidade sãovariáveis essenciais do sistema. Quanta diferença em relação à minha última passagem pela ilha!
O nosso destino foi a costa norte da ilha, que eu conhecia menos bem e onde hoje há alguns dos mais dinâmicos projetos vitivinícolas. A manhã estava cinzenta e, na Madalena, por volta das 9 horas chuviscava. Nada de surpreendente, num arquipélago onde é norma viverem-se as quatro estações do ano diariamente. A nossa primeira paragem foi no Cachorro, um núcleo urbano junto à costa, integrado na Área da Paisagem da Cultura da Vinha, classificada Património da Humanidade em 2004. 


Com as casas de pedra negra vulcânica irrepreensivelmente recuperadas e algumas imaculadamente caiadas, parecia um presépio à beira-mar, onde o verde do musgo deu lugar ao negro da lava basáltica. Boa parte delas eram adegas antigas, onde os picarotos fizeram vinho, recebiam os amigos e passavam boa parte dos seus melhores momentos, com o petisco, o verdelho e a música a animá-los. Como não podia deixar de ser, visitámos o lajido, o famoso rola pipas, a lava encordoada, as rilheiras, o poço de maré e a escultura lávica, que deu nome ao local. As arestas vivas da lava negra denunciavam que era recente, com origem numa das últimas vezes em que o vulcão decidiu acordar, em 1 de fevereiro de 1718.Segundo os relatos da época, após um ribombar assustador, que causou o pânico na população da ilha e  do vizinho Faial, a “Montanha” começou a cuspir lava incandescente, cujas torrentes devastaram tudo o que havia pelo caminho, incluindo a pequena ermida existente, até se despenharem no mar. Acabava de se formar o Mistério de Santa Luzia, assim chamado por ultrapassar a compreensãodo povo. Desde então passou a chamar-se a “terra queimada” e os picarotos, logo que se recompuseram do desastre, retomaram a obra ciclópica de construir os muros de novos currais e de plantar a vinha no lajido e no biscoito entretanto formados, pois sabiam que a riqueza da lava vulcânica levaria as cepas a produções copiosas. 

Só quando nos embrenhámos nas primeiras vinhas é que tivemos a verdadeira noção da obra feita, tal a dificuldade de andar em cima de lava de arestas vivas e tão acidentada. Fiquei surpreendido com a quantidade de vinhas novas, quase todas feitas nos currais antigos, depois de serem arroteados da mata atlântica que os invadiu, dominada pelo incenso, faia e urze dos Açores. Constatei, mais uma vez, a sina da vinha no Pico, com vagas sucessivas de esplendor e abandono. Depois do vulcão ter destruído as vinhas no século XVIII, houve um ressurgir radioso, que tornou o licoroso conhecido nos quatro cantos do mundo. Porém, pouco mais de um século passado, as pragas e doenças vindas da América, a partir de 1853, tornaram a destruir a vinha e a obrigar os picarotos a emigrar ou a dedicarem-seà pesca da baleia. Os poucos que ficaram plantaram figueiras para a produção de aguardente e, mais tarde, cepas de espécies americanas para fazerem o venerado “vinho de cheiro”. Mas nem as figueiras, conhecidas por a sua lendária capacidade de sobrevivência, nem as cepas americanas resistiram, pois a maior parte dos picarotos emigrou à procura de uma vida melhor. É em grande parte dos currais das figueiras, reconhecidos por terem os muros em forma de meia lua, que hoje os novos viticultores estão a plantar parte da vinha nova de Santa Luzia. Oxalá perdure por muitos anos, pois os vinhos a que dão origem são únicos e deliciosos.

*Virgílio Loureiro é considerado como um dos mais prolíficos académicos, investigadores, enólogos e comunicadores do vinho,com uma prestigiada carreira como docente do Instituto Superior de Agronomia no domínio da Microbiologia. Por estes dias vai escrever no “Diário dos Açores”.

Virgilio Loureiro *

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