Cesariny, os Açores   e alguns açorianos
Diário dos Açores

Cesariny, os Açores e alguns açorianos

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Opinião

O centenário do nascimento de Mário Cesariny, que hoje se completa, coloca – nos perante um dos mais notáveis poetas portugueses da segunda metade do seculo XX e, simultaneamente, um dos artistas plásticos mais notaveis da sua geração. Mário Cesariny (1923- 2006) surpreendia-nos à mesa dos cafés ou nos encontros ocasionais nas ruas, com a mordacidade feroz para a desmontagem das consagrações institucionais. As entrevistas e a correspondência, ao longo de décadas, por exemplo, com Cruzeiro Seixas, Vieira da Silva, a casa de Pascoais; alberto de Lacerda e o brasileiro Sérgio Lima, constituem um manancial de informações. Deparamos o Cesariny orgulhosamente maldito. 
O universo de Cesariny, para além das incursões eróticas noturnas, inseria – se, especialmente, nas mesas dos cafés, onde só conseguia escrever mas quando se encontrava só. Ainda, aluno da Escola  de Artes Decorativas António Arroio ( 1935-1942) ingressou na tertúlia do já desaparecido café Hermínios, na Almirante Reis; prosseguiu no café Royal, esquina da rua do Alecrim, como Cais do Sodré, vendido para uma dependencia bancária; na mítica Brasileira do Chiado; e, finalmente, no Gelo, o espaço de conspiração para o Regicídio, numa das extremidades da praça do Rossio para a estação do caminho de ferro .
Cesariny pertenceu ao Partido Comunista, nos meados dos anos 40. Poucos anos depois demarcou-se, ostensivamente, do partido e da cartilha literaria e ideológica neorrealismo para se dedicar à intervenção surrealista. Tudo se alterou, ainda no Café Herminius, quando Alexandre O’ Neil apareceu com um livro desconhecido que passou de mão em mão: «Histoire du surrealisme», de Maurice Nadeau. Era a primeira história do movimento.
A relação de Cesariny com o surrealismo encontra - se nos seus livros, entre os quais: Corpo Visível, Louvor e Simplificação de Álvaro de Campos, Discurso sobre a Reabilitação do Real Quotidiano, Manual de Prestidigitação, Pena Capital, Nobilíssima Visão ( dedicada, na primeira edição, a Fernando Lopes Graça), O Virgem Negra e Titânia ou a Cidade Queimada. Obras fortemente autobiográficas e que evidenciam a dimensão de Mário Cesariny entre os maiores poetas portugueses. A sua poesia distingue - se pela ousadia dos temas, a construção inovadora dos poemas e pelo arrojo da linguagem, enquanto introduziu na pintura, no desenho e nas colagens, novas técnicas de expressão.
POESIA E PINTURA
Através da correspondência e das entrevistas deparamos a sua opinião frontal em questões essenciais. «O surrealismo - declarou - foi um convite à poesia, ao amor, à liberdade, à imaginação pessoal. O surrealismo reuniu o romantismo, o simbolismo, o futurismo, as tradições libertárias e outras correntes, e deu-lhes um sentido. Esse sentido não vai desaparecer, ficou explícito». Esclarecia, contudo, que «depois dos 50 anos de idade, já ninguém é surrealista, nem mesmo o movimento surrealista. Para que a semente germine, volte a ser futuro, terá de separar-se, baixar à terra. Será sem dúvida um trabalho de séculos - moroso, lento - ou de terrivelmente rápido, fulgurante». E acrescentava: «Antes, foi a liberdade coletiva roubada, agora é a nudez aflitiva que à direita e à esquerda quer aparecer vestida».
A propósito dos vínculos entre a poesia e a pintura era categórico: «Escrevo desde 1942. A febre durou 12 anos. No fundo, escreve-se sempre o mesmo verso. Escrever poesia é uma espécie de invocação. Mas não se pode estar toda a vida a invocar o mesmo santo, sobretudo se ele não aparece. Assim sendo, não rezo mais». (…) «A pintura parece não bulir tanto connosco. É a imagem à mesma, mas parece exterior. É um trabalho de mediação em que parece não se estar implicado».
Cesariny nunca escondeu o que o afastava de André Breton e a sua preferência por Artaud: «O Breton é o fim de qualquer coisa. O Artaud é um começo. O Breton levou as coisas até um limite que parece final. O Artaud vai além disso, foi buscar outras civilizações, uma anti linguagem. Gosto mais do Artaud, que decidiu viver o seu drama como tragédia cósmica». 
E quais os poetas portugueses que admirava? Podemos sintetizar: Camões era uma citação óbvia, com a reserva de «ter engravatado a língua». Depois colocava Bocage, não o dos Sonetos, mas o das Cartas de Olinda a Alzira, salientando que foi «muito mais importante do que todas as ferrabrazices do Marquês de Sade». Incluía Antero, Gomes Leal e Cesário Verde entre os maiores. Ao descobrir Pascoaes houve um deslumbramento que o levava a afirmar que «é maior do que Pessoa»; (…) «Pascoaes é um poeta cósmico, que vai além de todos os limites, espaciais e lunares, e o Pessoa é um poeta que não sai da mesa do café».
PESSOA E OUTROS POETAS
A geração do Orpheu, na altura em que Cesariny surgiu para a literatura, era mal conhecida e ainda aceite com reticências. Cesariny passou a considerar Sá Carneiro «mais poeta por dentro e por fora do que o Pessoa dos múltiplos». Ao falar acerca da obra ortónima e heterónima de Pessoa, declarou frontalmente: «A problemática do Pessoa é aldrabice, filosofia da instrução primária. Ele «arranjou umas antinomias que não funcionam». O «ser tu sendo eu» não há, não é problema para ninguém, aforismo pseudo psicológico e pseudo filosófico que ele transportou numa dilemática, com um talento literário muito grande». Ou, então, «Fernando Pessoa, no fundo, é o anti poeta por excelência. Ele é um puro racionalista, a não ser quando se exalta e assina Álvaro de Campos». Procurava justificar que não era contra Pessoa, mas «contra a catedral em que se transformou e que até já dá bolsas de estudo». (sic)
Em relação aos contemporâneos, Cesariny destacava António Maria Lisboa «um importantíssimo poeta de linguagem europeia - e anti europeia - demandando outras margens de onde só mais um se avista: Rimbaud». Admirava Antero de Quental, Vitorino Nemésio, António Dacosta e Natália Correia. Irritava-se com «a poesia lamento», o José Régio que « só gritava e doía-lhe tudo». Enaltecia José Sebag, «poeta de uma poesia fulgurante, que publicou um só livro e desapareceu do mapa». Cabe esclarecer que Sebag deixou todos os inéditos à Biblioteca da Ilha do Faial onde aguardam publicação.
Punha objeções a Herberto Hélder situado «na lista negra-azul que o tempo areja», celebrado «nos anos cinquenta e oito, sessentas devido a um pendor lírico tipo Cântico dos Cânticos, servido por uma jeitaça, para metáfora-uma-atrás-da-outra e é-um-nunca -acabar. Que fazer?» Manteve um conflito ostensivo com Jorge de Sena e os seus adeptos; ficou, sobretudo, com uma aversão visceral a José Augusto França. A tal ponto que escreveu: «França é pior do que a NATO». Replicava as picardias de Luís Pacheco. Devolvia as perversidades de Cruzeiro Seixas. 
FÉRIAS EM SÃO MIGUEL
Confronta-nos com o arrojo da linguagem e a virulência cáustica perante os convencionalismos sociais, a mediocridade cultural e os totalitarismos políticos. Revive, a vários pretextos, nas entrevistas e nas cartas de Cesariny, editadas póstumamente Mesmo depois dos 80 anos, foi um provocador inveterado. Com razão ou sem razão. Posso comprovar, em mais de 40 anos de convívio, com intermitencias, durante as fixações no estrangeiro.
Visceralmente entranhado em Lisboa, a cidade onde nasceu, viveu e faleceu; conhecia Madrid, Paris, Londres, o México e outras cidades, como Ponta Delgada. Referiu, conforme já mencionamos, poetas e escritores açoreanos : Antero, Vitorino Nemesio, Natália Correia e José Sebag. O pintor António Dacosta. Acrescente – se Bruno da Ponte o editor da Minotauro e da Salamandra. Diversas vezes passou férias de verão, em São Miguel. 
Instalava-– se, por exemplo, no hotel de Agua de Alto ; o jardim José do Canto fascinava – o e deixou um expressivo testemunho, no respetivo livro de honra; era amigo pessoal de José da Costa Franco, em cuja Casa- Museu, na rua Machado Santos, existem livros autografados de Cesariny, em edições portuguesas e espanholas. A presença de Cesariny nas ruas de Ponta Delgada e arredores decorria em completo anonimato.
REPRESSÃO E… HOMENAGENS 
Até ao 25 de Abril, suportou a repressão sistemática da Polícia Judiciaria «uma filial – declarou - da Pide» e o terror do Tribunal de Execução de Penas, devido ao seu comportamento homosexual. No livro póstumo que reune as entrevistas concedidas entre 1952 e 2006, - intitula – se Uma Última Pergunta, cordenado por Laura Mateus Fonseca e editado por Manuel Rosa na Documenta) - menciona, para memória futura, os nomes de juízes que o massacraram. E pormenorizou: «tinha inscrito, na ficha da polícia, «suspeito de vagabundagem». (…) «Durante 30 anos suspeito! – comentava. Podiam investigar e tirar conclusões, não? Primeiro, ia lá todos os meses, como as putas. Depois, de três em três meses; depois, de seis em seis e, por fim, o que eles quisessem, podia ser até à minha morte. Tinha medo de ir ao telefone, ao correio. Ao princípio ainda me ria para dentro, mas começou a tornar-se insuportável».
Os enxovalhos permanentes deixaram marcas profundas. Fora sujeito à execração pública. Recebeu, contudo, em vida, as homenagens de dois Presidentes da República: Mário Soares integrou-o, na viagem de Estado a Londres, entre os convidados de prestígio. Jorge Sampaio atribuiu-lhe o mais elevado grau das condecorações honoríficas, a Grã-Cruz Ordem da Liberdade. Cesariny não recusou. 
A título póstumo ficou inscrito na toponímia de Lisboa e foi trasladado, em cerimónia de pompa e circunstancia, presidida pelo atual Presidente da República, para o cemitério dos Prazeres, onde tem jazigo próprio com escultura de Manuel Rosa. Faltou  receber- --mas  alterava – lhe, para a prosteridade, o perfil de Poeta Maldito --  o Prémio Camões e o Prémio Pessoa. Ser proposto e aceite na Academia das Ciências. Ter honras no Panteão Nacional.

António Valdemar*

*Jornalista, carteira profissional número Um; sócio efetivo da classe de Letras da Academia das Ciencias

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