De regresso ao Pico dez anos depois (2)
Diário dos Açores

De regresso ao Pico dez anos depois (2)

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Opinião

O primeiro produtor que visitámos foi Tito Silva, um respeitado e bem sucedido comerciante, que decidiu homenagear a obra dos seus familiares e dedicar-se à produção de vinho, iniciada em 2018. Antes de entrarmos na sua loja de vinhos, apercebi-me que tinha uma sala de provas no exterior, com uma vista deslumbrante sobre o oceano e para o vulcão, que não deixará nenhum turista indiferente. Foi a primeira sala de provas ao ar livre que vi no Pico, desde que comecei a visitar a ilha há cerca de vinte anos, sentindo uma realidade muito diferente da que conheci antes. Seguramente que o vinho ali provado agradece, pois perante a paisagem encantadora saberá seguramente melhor.
Ao entrarmos na pequena loja, que era uma antiga adega, dei de caras com o velho amigo Paulo Machado, que Tito Silva, muito assisadamente, contratou para o assessorar tecnicamente. Poucas pessoas haverá que conheçam tão bem os segredos das castas açorianas, do lajido e do biscoito como Paulo Machado. Por isso, Tito está em boas mãos e pode-se dedicar, por inteiro, à venda do vinho, que é a sua praia.
Pouco passava das dez da manhã quando comecei a ver colocar em cima da mesa uma série de copos de excelente qualidade, antevendo já o que nos esperava. Numa prateleira perfilavam-se inúmeras garrafas com a marca Cerca dos Frades, havendo algumas com a indicação de “esgotado”. A primeira colheita, um lote de Terrantez do Pico, Verdelho e Arinto dos Açores, deu apenas 653 garrafas e viu a luz do dia em 2018. Como era (muito) bom, desapareceu num ápice. A seguinte, com o mesmo lote, já teve quase 8500 garrafas, que também já voaram. A terceira refinou o portefólio com um varietal de Terrantez, um de Verdelho e o bem sucedido lote da casa, totalizando mais de nove mil garrafas e o projeto ia crescendo a olhos vistos. 
Fomos brindados com uma prova da colheita de 2021, com a novidade de ter um varietal de Arinto dos Açores, num total de quase dez mil garrafas. A ordem de prova deu prioridade ao lote das três castas e terminou com o Terrantez, tendo eu imaginado que fosse em crescendo, segundo o critério de Paulo Machado. Antes de levar os vinhos à boca cheirei os quatro com toda a atenção e o que mais me alertou foi o primeiro e não o último, como estava à espera. Pareceu-me mais completo e desafiante, mas a prova de boca é que iria dar o veredito. 
O Cerca dos Frades, Colheita Selecionada tinha 12,5% (v/v) de álcool e 6,8 g/L de acidez total. O aroma era muito delicado e um tanto discreto, como convém a um branco do Pico. Por isso, não criava uma expetativa alta para a prova de boca, embora eu já imaginasse que iria ter uma ótima surpresa com o primeiro gole. Se bem o pensei, melhor o senti. Apresentava uma acidez luxuosa a marcar o conjunto e o final era magnífico, não obstante a sua tenra idade. Reconheço que os consumidores de palato sensível talvez o achem agressivo, mas um bom caldo de peixe à moda do Pico resolve a situação a contento.
O Cerca dos Frades, Verdelho, Colheita Selecionada tinha apenas 12 % de álcool e 7,3 g/L de acidez total, mas não me pareceu mais agressivo do que o primeiro, talvez por o mosto de gota ter fermentado em cuba de inox e o de prensa em barricas de terceiro ano, ao contrário do primeiro que fermentou todo em cuba de inox. Mais uma vez sobressaiu a beleza da acidez e a discreta elegância aromática.
O Cerca dos Frades, Arinto, Garrafeira tinha 13 % de álcool e 7,2 g/L de acidez total, foi feito com prensagem total das uvas, fermentou com as leveduras selvagens, estagiou nove meses sobre as borras finas e teve um ano de garrafa antes de sair a público. Na prova de boca foi o meu preferido, mas quase ao nível dos restantes. Para quem tiver a sorte de ter algumas garrafas do vinho em casa recomendo que se esqueça de parte delas no canto da garrafeira, pois daqui a uns anos irá dar por bem empregue o sacrifício de não as beber já. Aliás, tal recomendação é extensível aos restantes, pois todos eles têm um potencial imenso de envelhecimento. Sim, é verdade, os brancos também podem envelhecer sumptuosamente, desde que tenham um perfil igual aos do Pico.
O Cerca dos Frades, Terrantez do Pico, Colheita Selecionada tinha 12 % de álcool e 7 g/L de acidez total, sendo considerado a jóia da coroa, pela raridade da casta e, principalmente, por Tito Silva deter a maior área de vinha da casta. Era tão surpreendente como os anteriores e irá melhorar muito com o estágio de garrafa.
No final da prova, todos fomos unânimes em reconhecer o impressionante caráter dos quatro vinhos, decerto muito mais marcado pelo clima e, quiçá, pela lava basáltica, do que pela casta.

Fiquei cheio de curiosidade em saber se o lajido de Santa Luzia segue o mesmo registo do lajido da Criação Velha, em que a água disponível para as videiras tem mais cloreto (de sódio) junto ao mar do que a caminho da montanha. Também fiquei curioso em saber se “as uvas que ouvem cantar o caranguejo” amadurecem mais depressa do que as outras, e se as cepas do lajido dão uvas mais doces que as do biscoito, mas não me souberam responder com segurança. Estou certo que, aos poucos, tanto o Tito Silva como o Paulo Machado irão desvendar todos os segredos da vinha da Cerca dos Frades, que já conta com uns impressionantes 20 hectares. Como o programa tinha um horário muito apertado preparámo-nos para sair e dissemos ao Tito Silva que voltaríamos no dia seguinte para visitara histórica vinha dos frades.
Quando nos íamos levantar eis que começam a pôr-nos à frente mais uma bateria de copos. Fui apanhado de surpresa e a expetativa subiu em flecha!

 Virgílio Loureiro *
*Virgílio Loureiro é considerado como um dos mais prolíficos académicos, investigadores, enólogos e comunicadores do vinho,com uma prestigiada carreira como docente do Instituto Superior de Agronomia no domínio da Microbiologia. 

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