Diário dos Açores

A Formação e as Políticas sociais: do projeto de vida individual ao projeto coletivo

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Formar… sim, mas como

A nossa realidade contém, é certo, uma cadeia de fatores - alguns históricos - que são pesadas condicionantes de insucesso e que potenciam problemas sociais, fragilizam a empregabilidade das pessoas bem como fragilizam nossa capacidade de criar riqueza. Mas a nossa realidade também contém o facto de que podemos, por sermos poucos, promover o acompanhamento – praticamente indivíduo a indivíduo - nas políticas que envolvem as pessoas, como as políticas sociais ou as de formação profissional. Esta possibilidade faz toda a diferença. Ou seja, é possível não ficarmos limitados por determinismos que condicionariam nossa realidade.
Vimos que há dois momentos longos nos quais a história de vida de cada um cruza a possibilidade de contrariar os tais determinismos sociais, condicionantes do nosso sucesso, que são a escola e o emprego. Nestes momentos, a educação, e em particular a formação profissional, tem um papel chave. Mas antes de prescrever qualquer ação de formação profissional que possa influenciar o sucesso de uma pessoa há que ter em conta os seus envolventes, em particular para os mais vulneráveis, já que a vulnerabilidade está muitas vezes na razão inversa da possibilidade efetiva de cada um imaginar o seu roteiro de vida.
Ou seja, já todos percebemos que o acompanhamento quer de jovens ao longo do seu percurso escolar quer de desempregados ou mesmo de trabalhadores ao longo da sua atividade é um ato extremamente desafiante, mas exigente, difícil e delicado, já que toca no que há de íntimo numa pessoa.
Exige desde logo o verdadeiro e efetivo envolvimento da pessoa a acompanhar, um grande respeito por ela, a necessidade de uma absoluta discrição e – o que não é tarefa fácil, mas que se encontra no cerne do acompanhamento -, ter uma visão clara do Gap (o desvio) entre as competências que a pessoa possui (ou não possui), as competências que o mercado de trabalho deseja e valoriza e as expectativas da pessoa. Acresce que neste processo de acompanhamento é exigido ao tutor, uma postura entre a firmeza e a capacidade de persuasão que conduza a que seja a própria pessoa a desenhar seu projeto de vida. E, só depois, deve haver encaminhamento para um curso adequado. Também deve, evidentemente, ser tida em conta a situação geral da pessoa. Muitas vezes é necessário ter um olhar mais alargado para outros problemas socias que podem estar presentes, tais como questões de saúde, de habitação ou de outras fragilidades que devem ser tratadas em simultâneo.
Isto leva-nos a alguns cuidados prévios.
O primeiro é o da estratégia condutora da abordagem. Tal como o pedagogo Antoine de la Garanderie dizia “eu não ensino, desperto o interesse”, também o tutor deve despertar o interesse da pessoa para um projeto profissional ou, de um modo mais alargado, para um projeto de vida, e não fazer o projeto em vez dele.
O segundo cuidado a ter é o de articular as respostas para o acompanhamento de um projeto de vida que mitigue o insucesso, como um trabalho a ser feito pelos mais experientes profissionais, em sinergia de várias competências e até mesmo de vários serviços – sociais, educativo, de emprego, de saúde, de habitação e outros.
Acresce que é inútil e até contraproducente se, na elaboração individualizada de projetos de vida, não existir um leque muito alargado de respostas preparadas, “chavena mão”, de cursos adequados a cada situação – em nível (desde alfabetização a pós-graduações de especialização para licenciados), tipologia, estratégia pedagógica, conteúdos, horários, duração. Não existirem cursos adequados às necessidades das pessoas é como se, em medicina, depois de fazer um bom diagnóstico e prescrever um bom medicamento, não haja medicamentos na farmácia. Também nunca se deve ajustar a situação às respostas já feitas(seria como se quiséssemos ajustar a doença de alguém ao medicamento que teríamos em stock), mas sim ajustar a resposta à pessoa.
Tudo isso coloca um enorme trabalho de articulação.
Um dos momentos mais delicados e difíceis é o da deteção das competências em cada pessoa. Mas há algumas metodologias já com histórico e com provas dadas. Para trabalhadores e desempregados, há os chamados Balanços de Competências que possuem ferramentas bem rodadas, mas que exigem enormes cuidados na sua aplicação e pessoas para o fazer preparadas para isso. O pior seria chamar Balanços de Competências àquilo que não são Balanços de Competências, estruturados, rigorosos, feitos por profissionais preparados.
Para os jovens NEET – os que não estão nem na Escola, nem a trabalhar nem em formação -, os que se encontram em abandono escolar, os inativos, ou apenas os que se interrogam e têm dúvidas sobre o seu futuro, defenderia a utilização de algo semelhante à Carta de Competências, aplicada na região parisiense, elaborada pela minha colega e amiga Patrícia Pottier. A Patrícia que tem apoiado a implementação desta Carta em vários países nórdicos, nos EUA e no Canadá, imaginou uma ferramenta que permite o mapeamento de competências de cada jovem, em 12 eixos de competências e em quatro graus dessas competências (identificar e se identificar; se confrontar e se implicar; confirmar e experimentar; implementar e gerir), afim de identificar o ponto de partida, onde quer o jovem chegar e que caminho deve ele percorrer. Deste mapeamento decore, depois, com clareza, que ações de formação devem ser desenhadas para o jovem construir o que deseja para o seu futuro. Esta Carta de Competências tem sido o pilar fundamental de um processo de construção do projeto profissional de centenas de milhares de jovens.
Será necessário, nesta lógica, repensar a missão e o funcionamento dos Serviços Públicos de Emprego criando um sistema de sinalização dos jovens NEET, e introduzir uma forte centralidade no acompanhamento da empregabilidade dos desempregados e inativos, com o esboço contratualizado de um projeto de inserção profissional assente numa intervenção formativa que decorre da situação individual que um Balanço de Competências detetou, do que cada pessoa deseja atingir e das necessidades em termos empresariais. Daqui decorre a necessidade de promover a generalização de um Balanço de competências, como política pública a implementar.
Seria necessário introduzir dois indicadores nas estatísticas de emprego – a precariedade das ofertas de emprego e um índice de dificuldade em encontrar trabalhadores para cada oferta, o que permitiria melhor quer a estabilidade laboral quer o encaminhamento dos desempregados e inativos para formações de profissões que não encontram trabalhadores.
Mas há algo nesta questão que não pode ser um equívoco: a estratégia que considera, primeiro, que na Escola deve aprender-se tudo, o que constituiria uma massa de conhecimentos, inesgotável, onde vamos, depois, beber ao longo da vida, é ilusória; tal como é ilusória a ideia de que se pode detetar numa ação de orientação vocacional, uma vocação definitiva para cada pessoa. Se nos podemos aperceber de uma apetência ou de uma sensibilidade, isto vai evoluindo – e muito -ao longo da vida, perante as circunstâncias que vamos cruzando. Há uma grande diferença entre a orientação vocacional e o acompanhamento ao longo da vida.
O papel do Governo dos Açores deve ser o de estimular todo esse processo, articulando os serviços e criando sinergias, para que esta ação pública seja generalizada, efetiva e de qualidade, desde a qualidade de acolhimento à qualidade das ações de formação que inclui qualidade pedagógica, pertinência e empregabilidade, até ao financiamento.
Acresce, nesta conjunção de fatores, que estaremos perante uma ocasião única para agir, também por oportunidade comunitária de financiamento.
Uma observação final: o fomento e a organização da elaboração de projetos individuais de sucesso para cada açoriano, são um projeto político coletivo. É mesmo um projeto político coletivo central.

Rui Bettencourt

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